segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Relógios com tempo de avós...Precisam-se!!!

Os fechos das lancheiras acomodam as sandes de queijo e fiambre, a maçã cortada em quartos e os pacotes do sumo “rei da selva”, enquanto se ajeitam mangas de casacos, puxam-se collants quase até ao pescoço, enrolam-se cachecóis, procuram-se insondáveis pares de ganchos, enfiam-se bandoletes, encurvam-se costas para ajeitar mochilas da escola, sacolas do judo e saquinhos de ballet,  apressa-se o olhar, certifica-se chaves, senhas de almoço, chapéus de chuva, enquanto, em acrobacias de malabarista, se tira do bolso o lenço de papel para lhe socorrer o nariz pingado dos petizes.
E eis que, a três quartos do corropio, a Bia interrompe o rodar de chave para a definitiva saída de casa com um:
-Mãe, tenho de ir fazer chichi…
-Agora, filha?! Mas já estamos atrasados! O teu chichi não aguenta até à escola?
-Oh mãe, não estejas ralhada com o meu chichi… Ele tem muitas pinguinhas e quando começas à roda ele começa assim…Parece a fazer espirradas…e já fiz uma pinguinha… Mas tenho mais…
- Vai…Vai lá… Anda lá à casa de banho! Ai, nem acredito que vou chegar outra vez atrasada…
Então a Bia diz em tom compassivo:
-Oh mamã, tens que arranjar um relógio de avó…
- Um relógio de avó?! O que é um relógio de avó, filha?!
- É um relógio onde cabe muito tempo!

 Na vida são, muitas vezes, momentos e frases assim que nos sacodem a alma e nos devolvem a nós próprios. Ao contrário do que muitas vezes pensamos, não são, de facto, os filhos que nos tiram do sério: eles devolvem-nos àquilo que é realmente sério…ou ao que realmente conta!
E o que conta não é a soma do que se dá em termos quantitativos. O que contará mais para o desenvolvimento de uma criança não será, certamente, tanto o número de actividades extracurriculares em que está inscrita ou o número de tecnologias de ponta a que tem acesso, os acessórios e brinquedos topo de gama, ou o vestuário e produtos da moda que tem (o que leva a que, tantas vezes, muitos pais trabalhem o dobro ou o triplo para garantirem este “financiamento”, numa lógica de aceitação sem reflexão crítica já que, numa sociedade competitiva como a nossa, em que se vive refém de uma imagem de sucesso, muitos receiam ser vistos como maus pais ou, pelo menos, desinteressados, incompetentes e falhados se não proporcionarem os tais serviços e produtos impostos por uma lógica de mercado e de consumo).

Não serão, sequer, as contas poupança e todos os eventos culturais e científicos a que possa (e deva, sempre que possível) poder ir.
E muito menos contarão, certamente, os momentos em que se está… mas não está.

Por se sentirem obrigados a viverem sete vidas numa vida só (ou mesmo num dia só!), muitos pais  deixaram de estar e de saber estar. Vão estando…Por vezes ansiosos, desencontrados, flutuantes, esporádicos, desancorados e vagos. Desde os horários dilatados de trabalho às solicitações para uma comunicação praticamente ininterrupta, muitos pais desconhecem o que seja uma habitação serena do tempo, entrando num ciclo sôfrego de actividade e consumo e arrastando as crianças consigo ou acabando por lhes oferecer esse modelo de vida de sobreabundância a vários níveis que, paradoxalmente, só as enfraquece.

O que realmente conta, o que enriquece o desenvolvimento de uma criança, não é, pois, a quantidade de produtos que tem à sua disposição; não é a quantidade de actividades sempre acompanhadas por “especialistas”; não é a quantidade de espectáculos e visitas a que vai “acompanhada” pelos pais agarrados cada qual ao seu telemóvel e mais interessados nos likes virtuais do facebook e na vida dos outros, do que nos likes reais do próprio filho que lhes sorri (por enquanto) diante dos olhares ausentes.

O que conta será a disponibilidade real  e ao vivo dos afectos dos pais, os gestos sem pressa, o estar inteiro, o respeito e a capacidade de corresponder às necessidades essenciais e comportamentos espontâneos da criança, seguindo como pauta o ritmo do amor, do bom senso e da lucidez. 

O que conta são pais emocionalmente disponíveis, capazes de reconhecer que a sua presença efectiva e entusiasmada, com coração inteiro, é o pilar do desenvolvimento de sentir-se amado e competente. E, esses sim, são sentimentos de base que tornam menos relevantes quaisquer ditos produtos ou serviços da moda e que são essenciais para se vir a gerir os desafios do futuro…com ou sem crise.

Crescer num ambiente que tem tempo, aceita e estimula os comportamentos espontâneos, permite a descoberta de vocações e competências próprias, algo essencial para se manter o entusiasmo e a persistência na adversidade, bem como de uma maior criatividade para se conseguir levar por diante os projectos próprios. A função parental é mesmo “ensinar a pescar” na adversidade, sem todos os apetrechos tecnológicos para o fazer, mas com a capacidade de análise crítica e criativa do meio (assente na confiança de se sentir amado e digno de admiração por aqueles que mais ama), o que possibilita a construção dos seus próprios instrumentos de pesca.

Não é preciso dar tudo aos filhos. É preciso dar o essencial…E sobretudo, o essencial de nós mesmos! A nossa essência, a nossa alma, o nossa forma simples mas original de estar na vida…Com tempo. De pais e avós!
O mesmo é dizer…Com o tempo que temos por dentro. Com a nossa arte de ser. Que pode não ser a melhor, mas temos a certeza que é a nossa melhor possível. E por isso é única. Porque ter tempo de avós talvez seja isso: ter tempo para olhar e olhar sem pressas mas vendo cada filho de forma única e, por isso, mais espaçosamente e mais adiante…

É ter tempo para o conhecer na sua espontaneidade livre, nas suas múltiplas dimensões, nos seus múltiplos modos de sorrir, de estar triste ou de estar "assim-assim" e saber apreciar e saborear isso, dando valor às inúmeras maravilhas da partilha e aos momentos deliciosos de eternidade pura que nos passam entre os olhos e entre as mãos…
E, acima de tudo, ter o sentido das pequenas coisas e colos onde cabem as grandes, amparando desequilíbrios com o corrimão invisível e seguro do afeto, sempre disponível…degrau a degrau.
 
(Beatriz, por Maria João e Mario Laginha)
                                                      http://youtu.be/KAggWL7WuGo

 




 
 
 
 

9 comentários:

  1. Querida professora, adorei imenso este texto! São as grandes verdades, que escreve com tanta sabedoria e doçura. E os seus filhos, tão pequeninos e tão lindoooooos! O Tiago parecia mesmo um principe e a Bia é tão fofinha e tão especial. Abracinhos para eles e livrinho para nós professora;) Catarina Silva

    ResponderEliminar
  2. Caminhemos degrau a degrau! E...haja pinguinhas!!
    Muito Bom!

    ResponderEliminar
  3. Pais perfeitos nunca haverá mas há escritas muito perto disso. Parabéns!

    ResponderEliminar
  4. Mais uma brilhante saida da Bea, adorei o texto e é tão verdade como os pais são julgados pelo que os filhos tem ou não...Cada vez o tempo escasseia com mais facilidade, mas quando é pouco se for de qualidade é "bom tempo". Beijinhos X. S.

    ResponderEliminar
  5. As verdades assemelham-se aos sentimentos por serem intemporais. O primeiro texto é deslumbrante, a par das fotos, o segundo é muito bom e a letra da música é um fascínio. Mas esta vers é uma preciosidade.Acho que esta é um original do Chico Buarque, estou errado? LR

    ResponderEliminar
  6. Professora Mónica, eu e o meu namorado e os meus colegas aqui do trabalho cada vez a admiramos mais! As suas palavras inspiram-nos e deviam era ser divulgadas porque nem toda a gente pensa assim ou fala de maneira que nos toca e que percebemos logo porque emocionamo-nos sempre e como é expressiva nas aulas e carinhosa a gente percebe tudo e mais alguma coisa. A sua Bea é fantástica e o Tiago é um amor, mesmo lindo! Muitos beijinhos querida professora e seja sempre assim!Ana Martinho

    ResponderEliminar
  7. Dizer-te o quê ? Que te amo !!! O resto tu sabes !

    ResponderEliminar
  8. Adorei professora Mónica. Que tudo corra bem em Roma mas volte para nós:))) Andreia Ribeiro

    ResponderEliminar
  9. A tua presença única já faz imensa falta na capital lusa. Regressa!Rápido!

    ResponderEliminar