domingo, 31 de março de 2013

Quando o Presente é mesmo...o melhor presente.

 
 
 
Vivemos numa época em que, verdadeiramente, existimos mais em função da hora  a seguir do que do minuto que passa. Já não formamos gerúndios... Já não vamos sentindo...Já não vamos sendo. Ou fomos ou seremos. Ou idealizamos passados ou pressionamos futuros. Mas raramente damos espaço ao tempo e  tempo que chegue ao espaço. Raramente formamos um gerúndio suficiente para o verbo sentir se demorar. Ou para o presente se tornar presente.
 
Ser presente significa comovermo-nos... Com os outros, connosco. Implica, muitas vezes, ficarmos mais iguais a nós próprios. Implica descobrirmos tudo o que era tão genuinamente nosso e que, com a pressa dos dias, dos meses, dos anos e da vida, fomos varrendo para debaixo do tapete do coração e da própria alma. Os afectos que escondemos, os sentimentos que não expressamos, a beleza das coisas simples que já não procuramos...
 
Vivemos com o coração abotoado e em silêncio, não exprimimos o que somos por dentro quase sempre por medo de sermos mal-julgados ou mal-entendidos, nunca mostramos os bastidores do nosso teatro e do nosso poema cardíaco que pode, tantas e tantas vezes, estar repleto de coisas bonitas. De coragem. De verdade. De persistência. De unidade. De bondade. De beleza. Infelizmente, aprendemos a esconder mais do que a mostrar.
 
Mas para amar e ser amável é essencial pormos legendas no coração. E, mais fulcal ainda, é pôr o coração a apanhar ar, tão sufocado que está pelo pó dos anos, pelo espartilho das rotinas e pela cinza das viciosas e mesquinhas comparações.
 
 
Acredito, pois, que a par do magnésio, não há melhor reforçador do músculo cardíaco do que todas as vitaminas e minerais que o Presente tem. Desde que o mesmo seja saboreado a gosto, com a alma e corpo presente.
 
Parar, neste sentido, não é morrer. Pelo contrário. É sobreviver. É viver sobre. É viver sobre uma vida que teima em viver-nos.
 
São, por isso, maravilhosos os dias, as pessoas, os poemas, os livros, os momentos, as coincidências, uma palavra, um olhar, o sorriso de sol no rosto dum filho, que nos dão o Presente de presente e nos fazem apetecer dizer a vida de outra maneira...
 
Então apetecem-nos gerúndios, apetece-nos o presente demorado, apetece-nos a beleza simples, as sílabas quietas, a generosidade de ser feliz.
Apetece-nos aprender todos os inícios, a reaprendizagem do olhar, uma estrofe por completar, um sorriso litoral, um rio ou um mar à porta dos olhos, um corpo num horizonte de água, uma líquida liberdade, uma secreta embarcação, um oceano breve, um vento favorável onde deixar voar o cabelo...ou uma madeixa de alma.
 
 
 
 
 
 

 
 

segunda-feira, 25 de março de 2013

(Re)começos do tempo...e da vida.


Os primeiros vestígios da manhã tocam-lhe as costas curvadas pelo cansaço de mais uma noite em vigília.
Toca-a, ainda de olhos fechados por um sono breve forçado a calmantes. Sente-lhe o cateter na mão minúscula, a inclinação da agulha, a aspereza do penso, as ligaduras que lhe amarram os ínfimos pulsos  às grades cinzentas da cama seis.
O número da cama alinha-se com as horas e desacerta nos minutos do relógio branco, altíssimo e redondo da parede oposta: são seis e dezassete.
Espera que ela acorde… Há tanto tempo que ela não acorda…
Desde a operação que a vida se resume a um olhar de esperas.
Sente saudades de lhe ver o olhar a amanhecer. A retina a encher-se de manhã. As pupilas a contraírem-se de luz. De lhe ver a curva dos seus olhos que lhe dá a volta ao peito numa dança de roda e doçura.
Sente saudades de lhe ver um centímetro quadrado de pele a descoberto onde possa pousar um beijo.
Tudo nela está coberto de pensos e tubos e fios e máquinas e incerteza e luta entre a vida e a morte e pensos e tubos e fios e máquinas…
Só queria pegá-la… Ou despegá-la de tudo aquilo… E encostá-la à vida. E encostá-la a si…E trazê-la para os cuidados intensivos do seu coração.
Não era justo que tanto sofrimento coubesse em tão pouca infância. Que, em tão pouco tempo, ela já tivesse aprendido mais a sobreviver do que a brincar e que soubesse mais de dores crudelíssimas à tona do corpo do que saber de ser feliz…
A revolta inunda-lhe a voz e enche-lhe de sal e água cada sílaba do verbo acordar que ela pronuncia, em modo imperativo, gota a gota…
- Acorda minha pequenina...por favor… acorda…
Beija-lhe o plástico dos tubos, a máscara de oxigénio, o branco das ligaduras. Beija-lhe o redondo dos joelhos, única superfície de pele a descoberto, colinas onde pousa, por momentos, a testa e o coração. O descuido das lágrimas borra os sorrisos que tinha desenhado com caneta neste espaço de pele. Recorda como a filha adorava quando lhe fazia desenhos nos pés ou nas mãos e, por isso, desenhava-lhe agora, e por ser o único espaço livre para tal, sorrisos nas articulações salientes. Volta a desenhá-los. Não fosse o estar em coma induzido e iria rir-se com cócegas, certamente. Continua a desenhá-los.
É então que lhe ouve um tossir abrupto, um tossir em socalcos, como se fosse a vida a sacudir-se e a abrir espaço dentro da voz. Um ligeiro movimento crepitante parece fazer ondular a cortina das pestanas. Ao mesmo tempo, a mão a tentar ser gesto. E o tossir a tentar ser ditongo. Ãe. E o ditongo a tentar ser palavra.
Mãe.
O relógio branco de lua parece acender-se em sol. Eram sete e trinta e dois e nunca uma palavra lhe soubera tão bem para dizer o tempo a começar...ou a vida.
 
 

sexta-feira, 22 de março de 2013

Heróis na sombra...

Acredito que, em cada um de nós, há sempre um super-herói escondido na sua própria sombra...
 
 Por vezes, acabamos por nunca o reconhecer e achar que os verdadeiros actos de heroísmo implicam grandes voos ou grandes façanhas.
 
Mas haverá maior heroísmo do que aquele que é preconizado pelos homens e mulheres anónimos que todos os dias educam, amam, trabalham, pensam, criam, lutam? Do que aqueles que, apesar da poeira dos dias, mantêm o olhar puro e limpo, capaz ainda de sonhar?
 
Haverá, nos tempos que correm, maior coragem do que aquela que nos leva de um minuto ao outro? 
 
 O heroísmo de voar de prédio em prédio, com visão raio-X a salvar cidades inteiras como na ficção, ficará certamente aquém do heroísmo de pais que enfrentam a doença de um filho ou daqueles que se confrontam com permanentes ameaças de perda de emprego, horários imprevisíveis ou sufocantes e vencimentos cada vez mais diminutos.   
 
Haverá maior heroísmo do que o da actual vida quotidiana? Do que o heroísmo da Dona Fernanda que, dia a após dia, educa dois filhos sozinha, mantém dois trabalhos, atende os clientes na caixa do supermercado sempre com um sorriso delicado, sai do trabalho a correr, entra no bulício dos transportes públicos para outra maratona e ainda chega a tempo de levar um dos filhos ao treino?
Sente que não não faz nada de mais. E o que faz melhor ainda é o caril de frango!


Há tantos super-heróis escondidos na própria sombra!