Poder-se-ia
dizer que os seus olhos quase lhe galgavam os passos… Não queria chegar
atrasado. Era o seu primeiro dia de escola e o primeiro ano na primária.
Porém,
essa enorme vontade de chegar que quase lhe saltava das órbitas, foi súbita e
irremediavelmente esmagada pela multidão ondulante de pais e crianças, mochilas
e lancheiras, cartolinas, malas, malinhas, sacos e saquinhos, totós,
rabos-de-cavalo, ganchinhos Kitty, bonés, risos e vontades, medos e
choros que, em amálgama, se acotovelavam junto ao portão…
O
seu rosto que, até agora, brilhava de cores estivais, rosto moreno de frescura
curiosa, entusiasmo rosado, quentura dérmica de um verão bem passado e atitude
fervorosa de “estou pronto para tudo”, transformava-se agora num rosto gelado
de janeiro, um inverno de alma.
Um
misto de pânico e o desabar das expectativas traduziram-se num olhar de
neblina, nuns olhos densos e pesados de nuvens cinzentas à beira do choro.
Conteve-se.
Talvez
porque a irmã, mais pequena, estivesse ali ao lado. Afinal, a bebé da família ainda
era ela, ou não fizesse ele questão de lhe o lembrar, em jeito de ritual
provocatório, todo o santo dia.
Ou
talvez mais porque o conteúdo do súbito chamamento efusivo da Raquel, colega da
pré-escola, lhe espicaçou o que de altivez e vaidade masculina já pode existir
do alto dos seus seis anos:
- Olh´ó Tiago!!! Tiago!!!! Tiago!!!! Olh´ó
Tiago, tia, é o Tiago, tia. Anda. Tiago!!! Tiago!!!! Estás bué giro!!!!!! Eh,
tens uma mochila dos Beyblades!!!
-
Raquel, Raquel!! Mãe, Bia, é a Raquel!…
Olha,
trago a lancheira dos Beyblades! Queres ver?
E trouxe Chipicaos com tatuagens
dos Beyblades… mas tenho que comer as peras. E tu, trouxeste Beyblades?
Olha, a
tua cartolina é da cor da minha. Boa!
-
Boa! Tiago, trouxeste tatuagens Chipicao dos Beyblades prá gente por os dois?
Oh tia, o Tiago é o meu namorado, não és Tiago? Anda, anda… Vamos prá sala,
sabes que somos da mesma sala?”
O
Tiago arregala os olhos! Todo ele é riso colado à pele!
Pânico
esquecido, expectativas reencontradas, mãe adeus; então e adeus à mana?!; ah já
me esquecia, tchau Bia bebé, bebé és tu,
tchau Luna (a cadelinha labradora retrivier que todos os dias o leva à
escola!)…
E lá
foi…Aliás, lá foram, ele e a Raquel.
Cartolinas
a abanar nas costas, a sair das mochilas, como se fossem caudas caninas a
expressar contentamento. Lancheiras a ondular nas mãos, passos quase
saltitantes, a acompanhar o entusiasmo do coração, a alma junta a pedir começo.
Foi assim o início do primeiro ano escolar do Tiago.
Para
trás ficam os dias a saber a infinito. A partir deste dia, têm o sabor a ponteiros
de relógio, o sabor a toques de entrada, a toques de saída para o recreio, a
toques de saída das aulas, a toques de entrada na vida onde as letras também
falam, onde
os números deixam de ser riscos para terem peso e quantidade, comprimento e
largura, volume e altura, onde o 2 deixa de ser um cisne para ser a forma
melhor de dizer Eu e TU, nós os Dois ou “o número de tatuagens de Beyblades que
trouxe hoje: 2 (duas), uma para tu pores no meu braço e outra para eu pôr no
teu”…
Porque,
no essencial, tudo se inicia assim, todas as aprendizagens, tudo o que é
verdadeiramente importante aprender na vida… seja o Português, a Matemática, o
Estudo do Meio, o “dividir a meias”, o partilhar, o amar…o não ser estúpido…tudo se inicia na relação!
(Recordo-me, aliás, de uma sábia frase de Santo Agostinho quando lhe
perguntaram sobre o que era mais importante aprender na vida, se era Matemática
ou Latim, ao que ele respondeu: “O importante é não ser estúpido.” Eis tudo!!!)
O
importante é essa disponibilidade interna e permanente para aprender... É essa capacidade desarrogante (mas elegante!) de nos “desestupidificarmos” em qualquer momento da vida!
Se é verdade que há muita coisa que aprendemos sozinhos, aprendemos sobretudo na relação com os outros... Mesmo aquilo que julgamos alcançar exclusivamente por mérito próprio, tem sempre algo de relacional em si... Tem sempre a ver com as relações que guardamos cá dentro, com as pessoas que guardamos do lado certo do coração.
Acredito, pois, que é na Relação que a aprendizagem, hoje e sempre,
tem os seus mais profundos e cruciais…INÍCIO(S)!!!
( Para quem está curioso, ao toque de saída o Tiago era um sorriso do tamanho do mundo (acho até que maior ainda!!!!)... Todo ele estava alegre, solto, suado, feliz...
E comentou...
-Oh mãe, sabes que afinal é mesmo bom ter uma mana como a Bia?
- Então porquê, filho?
-Dá jeito prá escola...
- Jeito prá escola...
- Explica lá isso...
-Então... A Bia é mandona, chatinha que se farta e quer sempre que eu ponha tatuagens de princesas no meu braço... Depois quer dar-me biberão, quer quer eu faça cara de bebé, que finja que choro, que "ressonho", pensa que eu sou o "Necuco" dela, percebes? Mas isso até dá jeito...
-Ai sim?!!
- É que todas as meninas da minha escola são como a Bia...São muito mandonas mas eu já sei do que elas gostam...Elas gostam que eu faça cara de Necuco!!! Assim, vês mãe?!
Ficam logo minhas amigas!
Até a Raquel perguntou se eu queria o "esparguete à "Bananesa"" do almoço dela! :)