domingo, 23 de março de 2014

Mudanças à Padeiro!!

Admito que, enquanto apaixonada confessa das Ciências Naturais, nunca me interessei particularmente por Economia a não ser a economia implicada na escolha de fraldas, leites, iogurtes, fatos de treino e todos os consumíveis de marca branca com que se possa educar dois filhos interiormente ricos por dentro mas económicos por fora; a implicada nos trajectos diários da vida e nos consumíveis de uma alma que não quer morrer estúpida ou a implicada, nos meus tempos de trabalhadora-estudante (não o irei ser sempre?!), em conseguir que dois contos (que eram tudo menos de fadas!) dessem para sobreviver durante a semana e neles coubessem, com as devidas acrobacias matemáticas que a necessidade inspira, alimentação, transportes, livros e fotocópias, livros e fotocópias, livros e fotocópias,  vestuário (sim, porque os estudantes também precisam de vestir qualquer coisa! E, que eu saiba, só mesmo numa praia em Timbaba, João Pessoa, é que é permitido as pessoas, estudantes ou não, "vestirem-se" com resmas de papel), consultas esporádicas (pois é, quem diria que os estudantes também adoecem!) e, por vezes,  alojamento.


 Ultimamente, porém, tenho-me deparado com insólitas mudanças face às quais esperava que um  conhecimento mais aprofundado naquela matéria me pudesse esclarecer (na falta de um motivo mais “iluminado” do que a já tão ensombrada crise )…

Nomeadamente, para esclarecer a “semi-privatização” de todo o apoio médico aos estudantes da Universidade de Lisboa e desvinculação respetiva dos serviços de Ação Social, com um aumento execrável dos preços das consultas das várias especialidades, o que tem conduzido a que muitos estudantes, principalmente os mais carenciados, se vejam privados de um apoio (e direito!) fundamental  - o apoio à saúde e promoção do bem-estar – o  qual  tem sido, aliás, tantas  vezes, crucial para o prosseguimento e conclusão com sucesso de tantos percursos académicos…e de vida!

Se aprendi bem, um dos clássicos da economia moderna, Adam Smith, resumia assim o funcionamento do sistema económico: devemos o nosso pão fresco diário não ao altruísmo do padeiro, mas à sua ganância. 
Ou seja, é graças à ambição do ganho que os bens de que precisamos, por exemplo, chegam às prateleiras dos supermercados. Esse dado é aceite e consensualmente aceitável. Mas o que se coloca aqui é, porém, de outra natureza e envolve uma reflexão urgente. 
Claro que não perde validade a justa expectativa que os serviços de apoio à saúde dos estudantes e o respetivo trabalho dos profissionais envolvidos nesse apoio produza lucro (ou não produza prejuízo). Mas este processo de reajuste dos serviços não pode ficar unicamente dependente daquilo que Adam Smith chamou “a ganância do padeiro”. Isto porque estamos num campo que é não só económico e financeiro, mas também é humano e cultural.

Porquanto, é preciso mudar aqui, talvez, a própria lógica dominante do lucro ou prosperidade, que os identifica com enriquecimento material. 
Que lucro terá uma Universidade cujas receitas do seu centro de saúde aumentam, mas cuja taxa de sucesso académico dos alunos diminui? 
Que lucro terá uma Universidade que vê as receitas a crescer e o número de suicídios nas residências a aumentar? 
Que lucro terá uma Universidade cujos estudantes abandonam os cursos no primeiro ou segundo ano por dificuldades de adaptação, ansiedade grave, depressão ou por se fecharem isolados em quartos dias, semanas, meses, em processos inexoráveis de auto e hetero destruição?
 Que lucro terão as famílias que depositaram, muitas vezes, as economias (e sonhos) de uma vida nessa mesma Universidade? Que lucro teremos todos nós? 
Mas, principalmente, que lucro terá aquele a quem lhe é diminuído o direito de verdadeiramente enriquecer em conhecimento, desenvolvimento pessoal e em humanidade, propósito último de uma Universidade que se pretende para todos?

Repensar o que consideramos vital e prioritário para aqueles que serão os verdadeiros cidadãos do mundo e cidadãos do futuro, é, pois, essencial. A sustentabilidade económica requer (talvez, primeiro que tudo) sustentabilidade psíquica. Não é por acaso que o consumo desenfreado não é outra coisa senão uma bolsa de compensações. As coisas que se adquirem são, obviamente, mais do que coisas: são promessas que acenam, são protestos impotentes por uma existência que não satisfaz, são ficções do nosso teatro interno.

Em suma, mudar sim, mas limitar só para alguns a possibilidade de aceder ao essencial, não.

E este facto e a própria palavra Economia (do Grego OiKonomia, que significa literalmente “norma ou administração da casa”), que começou por conhecer um uso profano em autores como Xenofonte – que utiliza a sugestiva imagem da articulação dos dançarinos numa roda para falar do controle e da precisão necessários ao seu bom funcionamento), acabaram também por me ajudar a compreender porque razão uma das pessoas mais admiráveis e uma das minhas grandes referências profissionais destes doze anos no Centro de Saúde da Universidade de Lisboa, se recusou a continuar no mesmo. Efectivamente, face a esta situação e com as condições de "normalização da casa" agora impostas,  o seu trabalho (excelente, aliás, e talvez um dos mais distintos e meritórios no panorama da Psiquiatria a nível nacional), tantas e tantas vezes realizado por puro amor à profissão, aos alunos e às diferentes minorias que, não fora ali, e nunca encontrariam resposta pronta e eticamente adequada no Sistema Nacional de Saúde, deixaria de fazer sentido. 


E a verdade é que, nesta Economia, ainda há, felizmente, aqueles que se recusam a ser meros dançarinos quando a roda está disfuncional! Outros vão mantendo a dança . Outros há que tentam melhorar a dança para que a roda melhore também. Para bem da(s) casa(s). E de todos.