quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Beatrices e Bruxices com Rampiros e Vandidos à mistura…


 

 

Aconchegando-se no meu colo para sacudir os últimos restos de sono e ainda com o dia a amanhecer no olhar, a Bia pergunta-me em tom de murmúrio ainda quente e doce…

  -Mãeee... Mãeee, hoje é amanhã?

-Hoje é hoje, filha…

 -Mas hoje é amanhã? A Ana Luísa disse que amanhã é "Hallodeen"…e podemos ir mascarados.

 -Ahhhhh… Já percebi… Ela disse isso ontem, não foi? Já passou uma noite…Já dormiste… E agora , sim, é hoje… Hoje é Halloween.
-E posso ir mascarada?
 -Sim..Podes ir mascarada, se quiseres. Temos um chapéu de bruxa no sótão.

 -Se eu isse de bruxa levo uma varinha mágica?

-Podes levar…Acho que há lá uma!

 -Então posso magiar o Gonçal?

 -“Magiar”?! Queres dizer “transformar” o Gonçalo? Mas porquê?...

 -Ele ontem no refeitório só fazia gracinhas e mais gracinhas e eu só me ria e não parava. Até sujei a mesa toda poque vomitei um bocadinho a rir…Assim um bocadinho, sabes, mãe? Não era mal disposta. Era assim cuspido de rido.

 A Ana Luísa disse que eu me estava a portar um bocadinho mal, um bocadinho assim assim mas não era só de minha culpa.

Também era de culpa do Gonçal, era de culpa do Gonçal estar só a fazer-me rir e a fazer palhacinhas!
Ele está sempre a fazer palhacinhas para eu me rir e depois a Ana Luisa zanga-se no refeitório e depois eu não consigo comer a sopa toda. E hoje eu vou magiá-lo

 - E vais “magiá-lo” em quê?

 - Num rampiro…Ai, não é rampiro…Num vandido…Ai, mãe...não sei dizer bem…É num daqueles que têm uns dentes grandes pra fora e almoçam muito à noite! ;)
 
 
 

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

E se pregasse um susto...ao medo?!


Em plena semana do Halloween vale a pena pensarmos no medo...sem nos assustarmos!

Estamos habituados a pensar que a vida sem o medo seria muito mais fácil e agradável.  Mas… que seria de nós sem ele? A verdade é que, simplesmente, não existiríamos. Sem o medo para nos proteger, atravessaríamos a rua sem olhar para os carros "só porque tínhamos pressa" ou enfrentaríamos um animal perigoso sem medidas de segurança "porque o bichinho até parece de peluche".

De facto, os que, ao longo da evolução, desdenharam o medo, deram-se mal com isso e morreram sem prole.

Ter medo é normal. E desconfiar do que não se conhece, temendo pela integridade física ou psicológica, é não só igualmente normal mas também desejável. O problema do medo não é tê-lo; é, por um lado, ter reações exageradas de receio face ao grau de risco ou perigo que o elemento do medo suscita; e, por outro lado, deixar que o medo nos paralise e faça perder a lucidez.

Em suma, todos os medos são, até certo ponto, adaptativos uma vez que têm como função proteger-nos de situações potencialmente perigosas. Deixam, porém, de o ser a partir do momento em que nos impedem de viver... de ir mais além, de explorar e descobrir um pouco mais da vida.

Não se deve confundir medo com timidez ou ansiedade de separação. Medo é algo de irracional, um sentimento de inquietação que se sente face a uma ameaça exterior. A timidez é uma característica de personalidade e a ansiedade de separação é, normalmente, mais momentânea e associada a um momento de corte relacional e /ou entrada num mundo diferente.

É de uma completa nulidade dizer a alguém amedrontado: “Não tenhas medo!”. O medo tem-se. Apenas isso. E quem o tem desejaria bem não o ter.

No caso dos medos infantis, por exemplo, parece-me sempre de uma extrema arrogância a forma como os mesmos são tratados pelos adultos quando, eles próprios, tiveram medos, cresceram com medos e ainda mantêm múltiplos medos na adultícia. Não só é um exercício de poder inaceitável como é, principalmente, ineficaz. Todos os dias os telejornais, feitos por adultos, relatam casos que causam medo. O medo é fácil de “comercializar”, vende e ganha adeptos. O medo vende e leva-nos a adotar medidas, comprar dispositivos, contratar seguros, etc. É por isso que temos que encará-lo com lucidez e clareza e mostrar, não só as crianças, mas também aos adultos, que se estiver a ser exagerado, tem que ser diminuído.

 De facto, o maior inimigo do medo é o próprio medo, porque paralisa quem o tem e insere-o num círculo vicioso que se autoalimenta.

E uma coisa é certa: a nossa fantasia é sempre mais aterradora que a realidade! E os monstros só continuarão a existir e a "agigantar-se" até se acender a luz do quarto...e da mente!!!

Por exemplo, se uma criança tem medo de ir sozinha à casa de banho (Ufff…a Bia já passou esta fase…Eram horaaaaaaaaaaaaaaasssssssssss literalmente de nariz na porta menos apetecível da casa…à espera de, pois é, chichis e cocós da Dona Bia: Oh mãe, estás aí, não estás?! O cocó ainda não saiu…Mas fica aí à espera, está bem? Não fujas… Não filha, a mãe não foge. A mãe espera pelo teu cocó…Enfim…). Continuando, se uma criança tem medo de ir à casa de banho sem a companhia dos adultos, convém começar a dar-lhe alguma autonomia: ficar à porta da casa de banho, depois a meio do corredor, conversando, depois já na ponta, até se conseguir que vá sozinha. Mas sempre perguntando se quer experimentar, encorajando-a e felicitando-a se conseguir progredir. (E esperar que, nas primeiras vezes, seja normal que ela venha a correr com metade do chichi feito e metade a sair por fora!!! Mas nunca a penalizar por isso!!) Conseguir vencer o medo é motivo para elogio, não para recriminação por qualquer aspeto prático. É importante ajudarmos o outro a vencer o medo mas nunca o expormos a mais do que ele consegue aguentar! Além disso, o medo é um sentimento íntimo e é assim que deve ser abordado. Não deve ser um motivo de gozo nem de conversas vãs.

Os graus em que o medo se expressa são muito variáveis, desde uma leve sensação de cautela e receio até às fobias e estados paranoides, estes sim, já muito graves.

 Nesta semana de Halloween fica, assim,  a sugestão: Não deixe que os seus medos o assombrem...Enfrente-os com a melhor luz de todas, aquela que é renovável e não custa nada nem é debitada em faturas no final do mês: chama-se lucidez… que é outra espécie de coragem!

E às vezes, para a ganharmos, não há mal nenhum em pedirmos ajuda aos outros, aos amigos, familiares, pais, companheiro/as,  ou até ao cão ou periquito se preciso for, pois o principal é ter junto de nós alguém que verdadeiramente nos dê força e confie que somos capazes.
Porque somos!!!...
 
 

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

(Com)passos de alma e coração...

 
Existe uma fábula africana que conta a história de um explorador branco que ansiava por chegar o quanto antes ao coração de África. Assim, ofereceu um pagamento extra aos transportadores para que caminhassem mais depressa. Estes obedeceram durante várias semanas, mas, uma tarde, sentaram-se no chão e recusaram-se a continuar. Quando o explorador pediu explicações, responderam:
 
- Andámos tão depressa que já não sabemos o que estamos a fazer. Agora temos que esperar que as nossas almas nos alcancem.
 
 
Esta breve história fala-nos de um elemento fundamental para o  funcionamento de todas as relações humanas: o tempo! Parece óbvio que nada se constrói sem tempo e, no entanto, cada vez isso é mais esquecido. Ao nível das relações este factor é crucial!
 
 Muitas vezes, a desorientação global que se sente deriva exactamente do facto de nos termos empenhado em viver numa velocidade tal que, como os transportadores da fábula, esquecemo-nos para onde vamos e quem realmente somos.
Confundimos, por exemplo, o facto de ter amigos no Facebook, onde se é incluído num só click, com a profundidade das relações que exigem tempo e experiências partilhadas.
 
 
Tudo o que verdadeiramente nos enche o coração é tudo aquilo que mais tempo nos demorou na alma e no olhar... É tudo o que, em suma, levou tempo a ajeitar cá dentro.
 
É tudo aquilo que é tanto, tudo aquilo para o qual a alma não arranja palavras e para o qual os olhos tantas vezes traduziram ora em lágrimas ora ora sonhos ora em pestanejares felizes, e que a memória fez saltar em saudade...
 
Mas é também tudo aquilo que nos enche a vida de Presente, que nos deixa um tic-tac feliz e vibrante, que nos desarruma passados para arranjar lugar para fututos em primeira plateia!
 
Sem pressa nem arritmias mas com a vida a latejar de contente... O coração é um orgão de tempo... de esperas e esperanças... E que bate particularmente depressa quando a alma lhe segue o ritmo... O que acontece duas, três, quatro ou cinco vezes na vida. Outras vezes, só uma. Há quem diga que aos infelizes, nenhuma. Não há receitas para esta sintonia... Ou talvez haja: não haver pressa nem velocidade. São ambas, acho, inimigas cardíacas e anímicas. 

 Não raras vezes queremos chegar tão depressa ao amor, ao prazer, ao sucesso, que aceleramos o coração e deixamos a alma pelo caminho... Chegados ao destino, somos só tic-tac. Temos a bomba a funcionar e a alma ficou para trás.
 
E um coração sem alma é apenas bomba... Só explode, mais cedo ou mais tarde. Não ama. Amar leva tempo... implica levar a alma na mochila... não a deixar ficar para trás.
 
Vê-se muitos políticos, por exemplo, que ainda dizem que estão de coração na política... mas já não têm alma nem anima. Foi perdida ou vendida no caminho, tal era a pressa de conquistar o coração do público.
 
É o que acontece com tantos músicos. E actores, pintores, artistas, escritores, casais.
 
O amor, o prazer, o sucesso, conquistam-se com a alma e o coração juntos...mas implicam sintonias...Tempo...
 
Tempo para fazer caminho... Tempo para os passos...Tempo para os passos  em conjunto...
Tempo para os...Compassos!
 
 
 

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Início(s)...


Poder-se-ia dizer que os seus olhos quase lhe galgavam os passos… Não queria chegar atrasado. Era o seu primeiro dia de escola e o primeiro ano na primária.

Porém, essa enorme vontade de chegar que quase lhe saltava das órbitas, foi súbita e irremediavelmente esmagada pela multidão ondulante de pais e crianças, mochilas e lancheiras, cartolinas, malas, malinhas, sacos e saquinhos, totós, rabos-de-cavalo, ganchinhos Kitty, bonés, risos e vontades, medos e choros que, em amálgama, se acotovelavam junto ao portão…

O seu rosto que, até agora, brilhava de cores estivais, rosto moreno de frescura curiosa, entusiasmo rosado, quentura dérmica de um verão bem passado e atitude fervorosa de “estou pronto para tudo”, transformava-se agora num rosto gelado de janeiro, um inverno de alma.

Um misto de pânico e o desabar das expectativas traduziram-se num olhar de neblina, nuns olhos densos e pesados de nuvens cinzentas à beira do choro.

Conteve-se.

Talvez porque a irmã, mais pequena, estivesse ali ao lado. Afinal, a bebé da família ainda era ela, ou não fizesse ele questão de lhe o lembrar, em jeito de ritual provocatório, todo o santo dia.

Ou talvez mais porque o conteúdo do súbito chamamento efusivo da Raquel, colega da pré-escola, lhe espicaçou o que de altivez e vaidade masculina já pode existir do alto dos seus seis anos:

 - Olh´ó Tiago!!! Tiago!!!! Tiago!!!! Olh´ó Tiago, tia, é o Tiago, tia. Anda. Tiago!!! Tiago!!!! Estás bué giro!!!!!! Eh, tens uma mochila dos Beyblades!!!

- Raquel, Raquel!! Mãe, Bia, é a Raquel!…
Olha, trago a lancheira dos Beyblades! Queres ver?
E trouxe Chipicaos com tatuagens dos Beyblades… mas tenho que comer as peras. E tu, trouxeste Beyblades?
Olha, a tua cartolina é da cor da minha. Boa!

- Boa! Tiago, trouxeste tatuagens Chipicao dos Beyblades prá gente por os dois? Oh tia, o Tiago é o meu namorado, não és Tiago? Anda, anda… Vamos prá sala, sabes que somos da mesma sala?”

O Tiago arregala os olhos! Todo ele é riso colado à pele!

Pânico esquecido, expectativas reencontradas, mãe adeus; então e adeus à mana?!; ah já me esquecia, tchau Bia bebé, bebé és tu,  tchau Luna (a cadelinha labradora retrivier que todos os dias o leva à escola!)…

 
E lá foi…Aliás, lá foram, ele e a Raquel.

Cartolinas a abanar nas costas, a sair das mochilas, como se fossem caudas caninas a expressar contentamento. Lancheiras a ondular nas mãos, passos quase saltitantes, a acompanhar o entusiasmo do coração, a alma junta a pedir começo.

 
Foi assim o início do primeiro ano escolar do Tiago.

Para trás ficam os dias a saber a infinito. A partir deste dia, têm o sabor a ponteiros de relógio, o sabor a toques de entrada, a toques de saída para o recreio, a toques de saída das aulas, a toques de entrada na vida onde as letras também falam, onde os números deixam de ser riscos para terem peso e quantidade, comprimento e largura, volume e altura, onde o 2 deixa de ser um cisne para ser a forma melhor de dizer Eu e TU, nós os Dois ou “o número de tatuagens de Beyblades que trouxe hoje: 2 (duas), uma para tu pores no meu braço e outra para eu pôr no teu”…

Porque, no essencial, tudo se inicia assim, todas as aprendizagens, tudo o que é verdadeiramente importante aprender na vida… seja o Português, a Matemática, o Estudo do Meio, o “dividir a meias”, o partilhar, o amar…o não ser estúpido…tudo se inicia na relação!
(Recordo-me, aliás, de uma sábia frase de Santo Agostinho quando lhe perguntaram sobre o que era mais importante aprender na vida, se era Matemática ou Latim, ao que ele respondeu: “O importante é não ser estúpido.” Eis tudo!!!)

 

O importante é essa disponibilidade interna e permanente para aprender... É essa capacidade desarrogante (mas elegante!)  de nos “desestupidificarmos” em qualquer momento da vida!
Se é verdade que há muita coisa que  aprendemos sozinhos, aprendemos sobretudo na relação com os outros... Mesmo aquilo que julgamos alcançar exclusivamente por mérito próprio, tem sempre algo de relacional em si... Tem sempre a ver com as relações que guardamos cá dentro, com as pessoas que guardamos do lado certo do coração.
 Acredito, pois,  que é na Relação que a aprendizagem, hoje e sempre, tem os seus mais profundos e cruciais…INÍCIO(S)!!!

( Para quem está curioso, ao toque de saída o Tiago era um sorriso do tamanho do mundo (acho até que maior ainda!!!!)... Todo ele  estava alegre, solto, suado, feliz...
E comentou...

-Oh mãe, sabes que afinal é mesmo bom ter uma mana como a Bia?
- Então porquê, filho?
-Dá jeito prá escola...
- Jeito prá escola...

- Explica lá isso...
-Então... A Bia é mandona, chatinha que se farta e quer sempre que eu ponha tatuagens de princesas no meu braço... Depois quer dar-me biberão, quer quer eu faça cara de bebé, que finja que choro, que "ressonho", pensa que eu sou o "Necuco" dela, percebes? Mas isso até dá jeito...
-Ai sim?!!
- É que todas as meninas da minha escola são como a Bia...São muito mandonas mas eu já sei do que elas gostam...Elas gostam que eu faça cara de Necuco!!! Assim, vês mãe?!
Ficam logo minhas amigas!
 Até a Raquel perguntou se eu queria o "esparguete à "Bananesa"" do almoço dela! :)