Os
fechos das lancheiras acomodam as sandes de queijo e fiambre, a maçã cortada em
quartos e os pacotes do sumo “rei da selva”, enquanto se ajeitam mangas de
casacos, puxam-se collants quase até ao pescoço, enrolam-se cachecóis,
procuram-se insondáveis pares de ganchos, enfiam-se bandoletes, encurvam-se
costas para ajeitar mochilas da escola, sacolas do judo e saquinhos de ballet, apressa-se o olhar, certifica-se chaves, senhas
de almoço, chapéus de chuva, enquanto, em acrobacias de malabarista, se tira do
bolso o lenço de papel para lhe socorrer o nariz pingado dos petizes.
E
eis que, a três quartos do corropio, a Bia interrompe o rodar de chave para a
definitiva saída de casa com um:
-Mãe,
tenho de ir fazer chichi…
-Agora,
filha?! Mas já estamos atrasados! O teu chichi não aguenta até à escola?
-Oh mãe, não estejas ralhada com o meu chichi… Ele tem muitas pinguinhas e
quando começas à roda ele começa assim…Parece a fazer espirradas…e já fiz uma
pinguinha… Mas tenho mais…
-
Vai…Vai lá… Anda lá à casa de banho! Ai, nem acredito que vou chegar
outra vez atrasada…
Então
a Bia diz em tom compassivo:
-Oh
mamã, tens que arranjar um relógio de avó…
-
Um relógio de avó?! O que é um relógio de avó, filha?!
-
É um relógio onde cabe muito tempo!
E o que conta não é a soma
do que se dá em termos quantitativos. O que contará mais para o desenvolvimento
de uma criança não será, certamente, tanto o número de actividades
extracurriculares em que está inscrita ou o número de tecnologias de ponta a
que tem acesso, os acessórios e brinquedos topo de gama, ou o vestuário e
produtos da moda que tem (o que leva a que, tantas vezes, muitos pais trabalhem
o dobro ou o triplo para garantirem este “financiamento”, numa lógica de
aceitação sem reflexão crítica já que, numa sociedade competitiva como a nossa,
em que se vive refém de uma imagem de sucesso, muitos receiam ser vistos como
maus pais ou, pelo menos, desinteressados, incompetentes e falhados se não
proporcionarem os tais serviços e produtos impostos por uma lógica de mercado e
de consumo).
Não serão, sequer, as contas
poupança e todos os eventos culturais e científicos a que possa (e deva, sempre
que possível) poder ir.
E muito menos contarão, certamente,
os momentos em que se está… mas não está.
Por se sentirem obrigados a viverem sete vidas numa vida só (ou mesmo num dia só!), muitos pais deixaram de estar e de saber estar. Vão estando…Por vezes ansiosos, desencontrados, flutuantes, esporádicos, desancorados e vagos. Desde os horários dilatados de trabalho às solicitações para uma comunicação praticamente ininterrupta, muitos pais desconhecem o que seja uma habitação serena do tempo, entrando num ciclo sôfrego de actividade e consumo e arrastando as crianças consigo ou acabando por lhes oferecer esse modelo de vida de sobreabundância a vários níveis que, paradoxalmente, só as enfraquece.
Por se sentirem obrigados a viverem sete vidas numa vida só (ou mesmo num dia só!), muitos pais deixaram de estar e de saber estar. Vão estando…Por vezes ansiosos, desencontrados, flutuantes, esporádicos, desancorados e vagos. Desde os horários dilatados de trabalho às solicitações para uma comunicação praticamente ininterrupta, muitos pais desconhecem o que seja uma habitação serena do tempo, entrando num ciclo sôfrego de actividade e consumo e arrastando as crianças consigo ou acabando por lhes oferecer esse modelo de vida de sobreabundância a vários níveis que, paradoxalmente, só as enfraquece.
O que realmente conta, o que enriquece o desenvolvimento de uma criança, não é, pois, a
quantidade de produtos que tem à sua disposição; não é a
quantidade de actividades sempre acompanhadas por “especialistas”; não é a quantidade
de espectáculos e visitas a que vai “acompanhada” pelos pais agarrados cada
qual ao seu telemóvel e mais interessados nos likes virtuais do facebook
e na vida dos outros, do que nos likes
reais do próprio filho que lhes sorri (por enquanto) diante dos olhares
ausentes.
O que conta será a
disponibilidade real e ao vivo dos
afectos dos pais, os gestos sem pressa, o estar inteiro, o respeito e a
capacidade de corresponder às necessidades essenciais e
comportamentos espontâneos da criança, seguindo como pauta o ritmo do amor, do bom senso e da lucidez.
O que conta são pais emocionalmente
disponíveis, capazes de reconhecer que a sua presença efectiva e entusiasmada, com
coração inteiro, é o pilar do desenvolvimento de sentir-se amado e competente.
E, esses sim, são sentimentos de base que tornam menos relevantes quaisquer
ditos produtos ou serviços da moda e que são essenciais para se vir a gerir os
desafios do futuro…com ou sem crise.
Crescer num ambiente que tem
tempo, aceita e estimula os comportamentos espontâneos, permite a descoberta de
vocações e competências próprias, algo essencial para se manter o entusiasmo e
a persistência na adversidade, bem como de uma maior criatividade para se
conseguir levar por diante os projectos próprios. A função parental é mesmo “ensinar
a pescar” na adversidade, sem todos os apetrechos tecnológicos para o fazer,
mas com a capacidade de análise crítica e criativa do meio (assente na
confiança de se sentir amado e digno de admiração por aqueles que mais ama), o
que possibilita a construção dos seus próprios instrumentos de pesca.
Não é preciso dar tudo aos
filhos. É preciso dar o essencial…E sobretudo, o essencial de nós mesmos! A
nossa essência, a nossa alma, o nossa forma simples mas original de estar na
vida…Com tempo. De pais e avós!
O mesmo é dizer…Com o tempo que temos por
dentro. Com a nossa arte de ser. Que pode não ser a melhor, mas temos a certeza
que é a nossa melhor possível. E por isso é única. Porque ter tempo de avós
talvez seja isso: ter tempo para olhar e olhar sem pressas mas vendo cada filho de forma
única e, por isso, mais espaçosamente e mais adiante…
É ter tempo para o conhecer na sua espontaneidade livre, nas suas múltiplas dimensões, nos seus
múltiplos modos de sorrir, de estar triste ou de estar "assim-assim" e saber apreciar e saborear isso, dando
valor às inúmeras maravilhas da partilha e aos momentos deliciosos de
eternidade pura que nos passam entre os olhos e entre as mãos…
E, acima de
tudo, ter o sentido das pequenas coisas e colos onde cabem as grandes,
amparando desequilíbrios com o corrimão invisível e seguro do afeto, sempre
disponível…degrau a degrau.
(Beatriz, por Maria João e Mario Laginha)
http://youtu.be/KAggWL7WuGo
Querida professora, adorei imenso este texto! São as grandes verdades, que escreve com tanta sabedoria e doçura. E os seus filhos, tão pequeninos e tão lindoooooos! O Tiago parecia mesmo um principe e a Bia é tão fofinha e tão especial. Abracinhos para eles e livrinho para nós professora;) Catarina Silva
ResponderEliminarCaminhemos degrau a degrau! E...haja pinguinhas!!
ResponderEliminarMuito Bom!
Pais perfeitos nunca haverá mas há escritas muito perto disso. Parabéns!
ResponderEliminarMais uma brilhante saida da Bea, adorei o texto e é tão verdade como os pais são julgados pelo que os filhos tem ou não...Cada vez o tempo escasseia com mais facilidade, mas quando é pouco se for de qualidade é "bom tempo". Beijinhos X. S.
ResponderEliminarAs verdades assemelham-se aos sentimentos por serem intemporais. O primeiro texto é deslumbrante, a par das fotos, o segundo é muito bom e a letra da música é um fascínio. Mas esta vers é uma preciosidade.Acho que esta é um original do Chico Buarque, estou errado? LR
ResponderEliminarProfessora Mónica, eu e o meu namorado e os meus colegas aqui do trabalho cada vez a admiramos mais! As suas palavras inspiram-nos e deviam era ser divulgadas porque nem toda a gente pensa assim ou fala de maneira que nos toca e que percebemos logo porque emocionamo-nos sempre e como é expressiva nas aulas e carinhosa a gente percebe tudo e mais alguma coisa. A sua Bea é fantástica e o Tiago é um amor, mesmo lindo! Muitos beijinhos querida professora e seja sempre assim!Ana Martinho
ResponderEliminarDizer-te o quê ? Que te amo !!! O resto tu sabes !
ResponderEliminarAdorei professora Mónica. Que tudo corra bem em Roma mas volte para nós:))) Andreia Ribeiro
ResponderEliminarA tua presença única já faz imensa falta na capital lusa. Regressa!Rápido!
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