Os primeiros vestígios da manhã tocam-lhe as costas curvadas
pelo cansaço de mais uma noite em vigília.
Toca-a, ainda de olhos fechados por um sono breve forçado a
calmantes. Sente-lhe o cateter na mão minúscula, a inclinação da agulha, a
aspereza do penso, as ligaduras que lhe amarram os ínfimos pulsos às grades cinzentas da cama seis.
O número da cama alinha-se com as horas e desacerta nos minutos
do relógio branco, altíssimo e redondo da parede oposta: são seis e
dezassete.
Espera que ela acorde… Há tanto tempo que ela não acorda…
Desde a operação que a vida se resume a um olhar de esperas.
Sente saudades de lhe ver o olhar a amanhecer. A retina a encher-se de manhã. As
pupilas a contraírem-se de luz. De lhe ver a curva dos seus olhos que lhe dá a
volta ao peito numa dança de roda e doçura.
Sente saudades de lhe ver um centímetro quadrado de pele a
descoberto onde possa pousar um beijo.
Tudo nela está coberto de pensos e tubos e fios e
máquinas e incerteza e luta entre a vida e a morte e pensos e tubos e fios e máquinas…
Só queria pegá-la… Ou despegá-la de tudo aquilo… E encostá-la
à vida. E encostá-la a si…E trazê-la para os cuidados intensivos do seu
coração.
Não era justo que tanto sofrimento coubesse em tão pouca
infância. Que, em tão pouco tempo, ela já tivesse aprendido mais a sobreviver
do que a brincar e que soubesse mais de dores crudelíssimas à tona do corpo do
que saber de ser feliz…
A revolta inunda-lhe a voz e enche-lhe de sal e água cada
sílaba do verbo acordar que ela pronuncia, em modo imperativo, gota a gota…
- Acorda minha pequenina...por favor… acorda…
Beija-lhe o plástico dos tubos, a máscara de oxigénio, o
branco das ligaduras. Beija-lhe o redondo dos joelhos, única superfície de pele
a descoberto, colinas onde pousa, por momentos, a testa e o coração. O descuido das
lágrimas borra os sorrisos que tinha desenhado com caneta neste espaço de pele.
Recorda como a filha adorava quando lhe fazia desenhos nos pés ou nas mãos e,
por isso, desenhava-lhe agora, e por ser o único espaço livre para tal,
sorrisos nas articulações salientes. Volta a desenhá-los. Não fosse o estar em coma induzido e
iria rir-se com cócegas, certamente. Continua a desenhá-los.
É então que lhe ouve um tossir abrupto, um tossir em
socalcos, como se fosse a vida a sacudir-se e a abrir espaço dentro da voz. Um
ligeiro movimento crepitante parece fazer ondular a cortina das pestanas. Ao
mesmo tempo, a mão a tentar ser gesto. E o tossir a tentar ser ditongo. Ãe. E o
ditongo a tentar ser palavra.
Mãe.
O relógio branco de lua parece acender-se em sol. Eram sete
e trinta e dois e nunca uma palavra lhe soubera tão bem para dizer o tempo
a começar...ou a vida.
Querida Mónica,
ResponderEliminara sua escrita emociona-me sempre e texto levou-me às lágrimas. É lindo!
Beijinhos muito grandes para si e para os seus e os desejos de uma Santa Páscoa.
Isabel Sá
Querida Isabel,
Eliminarmuito agradeço e retribuo toda a gentileza do seu comentário e dos seus simpáticos votos.
Beijinhos muito ternos e doces :)
Tão tocante quanto excepcional. Supremo.
ResponderEliminarNem sei o que dizer! Fiquei excepcionalmente encantada com o comentário. Supremo?! talvez no expoente da dor e da alegria/euforia/maravilha. Sim, isso sim! Grata! Muito, muito grata :)
EliminarAbraço imenso:)
Adorei o texto, relata exatamente a realidade daqueles momentos. Beijinho
ResponderEliminarMuito obrigada! Fiquei muito comovida com o comentário. Foi especial ;)
EliminarBeijinhos. Muitos, muitos!
Touching and deeply beautiful!!Hugs!!_F
ResponderEliminarDear F, thanks!
ResponderEliminarHugs!!
M
As melhoras da pequenina e que cresça cheia de força!
ResponderEliminarUm beijinho,
Luísa E.
Mais um texto que nos toca profundamente. A vida pode ser cruel, os obstáculos podem ser difíceis, as privações podem ser terríveis; mas quando o sol volta a brilhar, mesmo que saibamos que novas nuvens possam um dia surgir, o nosso coração enche-se de uma alegria de amor quente que nos faz acreditar em tudo, cheios de renovada esperança. Muitas vezes basta um pequeno pestanejar ou a tentativa de um ligeiro gesto, para nos fazer renascer! A força da vida está naquele pequeno ser e não importam os inúmeros tubos, as gazes, as máquinas... O seu sorriso não está destinado a desfaceler!
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