segunda-feira, 25 de março de 2013

(Re)começos do tempo...e da vida.


Os primeiros vestígios da manhã tocam-lhe as costas curvadas pelo cansaço de mais uma noite em vigília.
Toca-a, ainda de olhos fechados por um sono breve forçado a calmantes. Sente-lhe o cateter na mão minúscula, a inclinação da agulha, a aspereza do penso, as ligaduras que lhe amarram os ínfimos pulsos  às grades cinzentas da cama seis.
O número da cama alinha-se com as horas e desacerta nos minutos do relógio branco, altíssimo e redondo da parede oposta: são seis e dezassete.
Espera que ela acorde… Há tanto tempo que ela não acorda…
Desde a operação que a vida se resume a um olhar de esperas.
Sente saudades de lhe ver o olhar a amanhecer. A retina a encher-se de manhã. As pupilas a contraírem-se de luz. De lhe ver a curva dos seus olhos que lhe dá a volta ao peito numa dança de roda e doçura.
Sente saudades de lhe ver um centímetro quadrado de pele a descoberto onde possa pousar um beijo.
Tudo nela está coberto de pensos e tubos e fios e máquinas e incerteza e luta entre a vida e a morte e pensos e tubos e fios e máquinas…
Só queria pegá-la… Ou despegá-la de tudo aquilo… E encostá-la à vida. E encostá-la a si…E trazê-la para os cuidados intensivos do seu coração.
Não era justo que tanto sofrimento coubesse em tão pouca infância. Que, em tão pouco tempo, ela já tivesse aprendido mais a sobreviver do que a brincar e que soubesse mais de dores crudelíssimas à tona do corpo do que saber de ser feliz…
A revolta inunda-lhe a voz e enche-lhe de sal e água cada sílaba do verbo acordar que ela pronuncia, em modo imperativo, gota a gota…
- Acorda minha pequenina...por favor… acorda…
Beija-lhe o plástico dos tubos, a máscara de oxigénio, o branco das ligaduras. Beija-lhe o redondo dos joelhos, única superfície de pele a descoberto, colinas onde pousa, por momentos, a testa e o coração. O descuido das lágrimas borra os sorrisos que tinha desenhado com caneta neste espaço de pele. Recorda como a filha adorava quando lhe fazia desenhos nos pés ou nas mãos e, por isso, desenhava-lhe agora, e por ser o único espaço livre para tal, sorrisos nas articulações salientes. Volta a desenhá-los. Não fosse o estar em coma induzido e iria rir-se com cócegas, certamente. Continua a desenhá-los.
É então que lhe ouve um tossir abrupto, um tossir em socalcos, como se fosse a vida a sacudir-se e a abrir espaço dentro da voz. Um ligeiro movimento crepitante parece fazer ondular a cortina das pestanas. Ao mesmo tempo, a mão a tentar ser gesto. E o tossir a tentar ser ditongo. Ãe. E o ditongo a tentar ser palavra.
Mãe.
O relógio branco de lua parece acender-se em sol. Eram sete e trinta e dois e nunca uma palavra lhe soubera tão bem para dizer o tempo a começar...ou a vida.
 
 

10 comentários:

  1. Querida Mónica,
    a sua escrita emociona-me sempre e texto levou-me às lágrimas. É lindo!
    Beijinhos muito grandes para si e para os seus e os desejos de uma Santa Páscoa.

    Isabel Sá

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    1. Querida Isabel,
      muito agradeço e retribuo toda a gentileza do seu comentário e dos seus simpáticos votos.

      Beijinhos muito ternos e doces :)

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  2. Tão tocante quanto excepcional. Supremo.

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    1. Nem sei o que dizer! Fiquei excepcionalmente encantada com o comentário. Supremo?! talvez no expoente da dor e da alegria/euforia/maravilha. Sim, isso sim! Grata! Muito, muito grata :)

      Abraço imenso:)

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  3. Adorei o texto, relata exatamente a realidade daqueles momentos. Beijinho

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    1. Muito obrigada! Fiquei muito comovida com o comentário. Foi especial ;)
      Beijinhos. Muitos, muitos!

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  4. As melhoras da pequenina e que cresça cheia de força!

    Um beijinho,
    Luísa E.

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  5. Mais um texto que nos toca profundamente. A vida pode ser cruel, os obstáculos podem ser difíceis, as privações podem ser terríveis; mas quando o sol volta a brilhar, mesmo que saibamos que novas nuvens possam um dia surgir, o nosso coração enche-se de uma alegria de amor quente que nos faz acreditar em tudo, cheios de renovada esperança. Muitas vezes basta um pequeno pestanejar ou a tentativa de um ligeiro gesto, para nos fazer renascer! A força da vida está naquele pequeno ser e não importam os inúmeros tubos, as gazes, as máquinas... O seu sorriso não está destinado a desfaceler!

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