quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

O que nos motiva...


Quem tem um porquê para viver consegue enfrentar qualquer como.
Nietzche

 

Há obras que nos marcam para a vida… A obra “Man´s Search for Meaning”, de Viktor E.Frankl, foi uma delas.

Este livro é, efectivamente, e como Allport bem focou, “uma obra-prima da narrativa dramática focalizada sobre os mais profundos problemas humanos”, nomeadamente, a procura de um sentido para a vida quando as circunstâncias nos são mais adversas e tudo nos é retirado.

Viktor E. Frank, embora naturalizado americano, foi professor de Neurologia e Psiquiatria na Universidade de Medicina de Viena e, durante a II Guerra Mundial, passou três anos nos campos de concentração de Auschwitz e Dachau. O pai, a mãe, o irmão e a esposa  morreram nesses campos de concentração e, como o próprio diz, este livro é a história de um campo de concentração visto de dentro, contada por um dos seus sobreviventes. Frankl descreve e percebe, por exemplo, tudo o que o ser humano faz quando subitamente percebe que não tem “ nada a não ser a sua existência ridicularmente nua”.  Como o autor refere, "no campo de concentração, todas as circunstâncias competiam para fazer os prisioneiros perderem o controlo e perderem toda a sua dignidade e sentidos de vida. Todos os objectivos comuns da vida eram desfeitos. A única coisa que sobrava era “a última liberdade humana" – a capacidade de escolher a atitude pessoal que se assume diante de determinado comportamento e circunstâncias."

O que é que, em circunstâncias adversas ou mesmo limite, nos prende à vida? Ou, mesmo na ausência de adversidades aparentes, o que é que nos faz viver? O que é que nos motiva? Esta questão é de suma importância e é sobre ela que proponho uma reflexão. Porém, antes de a abordar mais profundamente, não queria deixar de referir que actualmente, e salvo, obviamente, as devidas comparações, há muitas pessoas a viverem em autênticos campos de concentração à vista de todos, aceites por todos e, o que é ainda mais ubíquo, legais e pagos por todos.

Estes “campos de concentração” têm, na nossa sociedade, vários nomes.

Uns poder-se-iam chamar "campos de concentração mentais", em que a pessoa se auto-mutila, auto-tortura e auto-destrói por várias razões, que vão desde as perturbações da personalidade a formas de agressão auto-deslocada em resposta ao sentimento de  frustração. Estes campos de concentração mentais estão igualmente presentes quando a pessoa é invadida por  pensamentos delirantes, obsessões ou se vê, de repente, prisioneira de compulsões, comportamentos aditivos  e se coloca, voluntaria ou involuntariamente, em situações e/ou relações que a tornam num farrapo humano. E aí também entramos no campo da profunda complexidade das motivações humanas e da psicopatologia e a conversa daria pano para mangas e calças e um guarda-roupa inteiro.

Outros "campos de concentração" chamam-se casas de famílias altamente destruturadas, em que entramos e sentimos que em meia-hora vivemos metade da Primeira Guerra Mundial, um quarto da Segunda, a Guerra Colonial inteira e mais um terço da Guerra do Golfo e ainda uma dízima da Guerra Cívil na Síria. O pai ameaça esfaquear a mãe depois de ter abusado sexualmente da filha menor à frente das duas irmãs de três e quatro anos que se agarram aos irmãos de cinco e seis que apontam uma arma ao pai, depois de lhe beberem a garrafa de vinho que este deixou quase no fim. Este cenário repete-se quase diariamente.

Outros chamam-se tribunais e aqui entramos noutro guarda-roupa ainda mais extenso (e caótico!) que o acima referido pelo que nem mais uma palavra vou escrever sobre os ditos.

Outros ainda chamam-se lares ou, para usar um eufemismo totalmente perverso - “casas de repouso”! São aqueles que cobram valores exorbitantes para "fazer o favor" de cuidar dos nossos idosos, ou seja, de os entupir de ansiolíticos e hipnóticos a fim de os mesmos não berrarem para sair dali, não pontapearem e não gritarem quando os amarram, não chamarem pelas famílias para os tirarem dali senão lá se vai mais uma fonte de rendimento, não vomitarem, não cuspirem as sondas porque dá muito trabalho tentar dar o comer à boca, etc, etc, etc. E até ajuda entupi-los bem porque assim sempre começam a usar fraldas, estão sempre na cama e os hipnóticos e ansiolíticos tomados por mais de dois meses sem interrupção causam perdas de memória irreversíveis em idade avançada e agravam as demências, o que é óptimo porque assim já nem reconhecem tão bem os familiares e ficam mais tempo no lar…até morrer, de preferência! Mas com todas as condições de higiene! Com todas as condições para...repousar. Pois, porque  nestes "campos de concentração" quanto menos o idoso fizer, souber, pensar, falar, melhor. O que interessa é vegetar. O ideal é dar pouco trabalhinho ao pessoal que a malta quer é ir para casa ir ver a Casa dos Segredos.

Há ainda muitos outros campos que têm muitos outros nomes mas é sempre importante deixar ao leitor a liberdade de decidir quais é que gostaria de ver aqui incluídos e promover, assim, a respectiva auto-determinação…

E aqui chega-se ao ponto essencial: o que nos faz viver, o que nos motiva, o que nos faz sentir vivos, o que nos mantém vivos, o que nos faz sentir humanos? Quando é que alguém se deixa morrer? Quando é que alguém, apesar de todas as contrariedades do meio, deseja viver?

Todos teremos, certamente, respostas diferentes. Para muitos, a resposta é unânime: a família. As pessoas de quem gostamos. O amor aos outros. Ou o amor a uma causa. E tudo isto, tudo isto que é tanto, faz tanto sentido. Porque, efectivamente, o que nos faz viver é aquilo que nos move ao encontro de algo. Para estarmos motivados é preciso ter algo para ir ao encontro de... (a palavra Motivação deriva do latim movere, tendo, por isso, na sua raiz etimológica a noção de movimento). Se não temos nada nem ninguém, nenhuma causa nem nenhum Outro que nos mova, que nos faça ir ao seu encontro, encerramo-nos em nós próprios, perdemos o sentido da própria vida.

Talvez por isso Frankl tenha tocado num aspecto essencial: o sentido. E o sentido encontrado por mim mas fora de mim. Ou seja, aquilo que me faz viver, aquilo que me motiva, em última instância, não está em mim mesmo, está no mundo, está nos outros. Eu vivo e sou capaz de continuar vivo se sentir que tenho algo ou alguém porque viver, alguém ou algo que precisa de mim, um mundo que precisa de mim, uma vida que precisa de mim.

Se vivo apenas para mim próprio e se me resumo apenas a mim e a mim mesmo, facilmente perco o sentido da vida.

Ora, decidir se quero viver para mim, para dentro, ou para o mundo, para fora, é uma decisão minha. O sentido que dou à minha vida (não o que me acontece!) sou eu que o determino.  Eu tenho essa liberdade, independentemente das circuntâncias em que vivo.

E, principalmente, a permanente liberdade de ESCOLHER, mesmo sendo ou estando prisioneiro, é algo que eu posso ter. Escolher SER. Escolher uma atitude. Isso dá-me dignidade. E motivação!

E nisto encontramos um ponto de convergência com Maslow, um psicólogo humanista que muito admiro, autor da teoria hierárquica das motivações.

Um dos princípios fundamentais defendidos por Maslow, e aquele que mais admiro na sua teoria, foi o de que todas as pessoas têm três necessidades psicológicas básicas e que, grosso modo, são essas as que as motivam para a vida e para a auto-realização como seres humanos.

Assim, todo o ser humano, para se sentir psicologicamente equilibrado, tem necessidade de ver satisfeitas as suas necessidades de:

a) Auto-determinação (motivação para a autonomia, para a auto-determinação, para escolher)

b) Competência (motivação para se sentir competente/desenvolver um talento)

c) Relação/Vinculação (motivação para o estabelecimento de relações de vinculação e relações interpessoais)

 Se quisermos transpor para a educação infantil, para uma criança se desenvolver equilibrada e globalmente, ou seja, do ponto de vista físico e psicológico, é importante ter satisfeitas as suas necessidades fisiológicas (nenhuma criança consegue aprender matemática ou concentrar-se na leitura com o estômago vazio ou sem ter conseguido dormir! A sublimação dos impulsos vitais, enquanto mecanismo de defesa psicanalítico e por vezes “procurado” pelos artistas só funciona para os adultos, que normalmente têm suficientes reservas adiposas, não para as crianças!!!!).
Por outro lado, tem que ter as suas três necessidades básicas  psicológicas igualmente satisfeitas, ou seja, é importante que ela se sinta competente em alguma área, nomeadamente uma área que seja valorizada pelos adultos (e não apenas, como tantas vezes acontece, a ser o “palhaço” da turma ou o “bad boy”) – todas as crianças são competentes em alguma coisa e é importante serem reconhecidas nisso ou, de outra forma, acabarão por satisfazer essa necessidade de competência através de comportamentos desviantes já que isso lhes traz a aprovação dos pares.
Uma criança pode não ser competente na leitura mas sê-lo em expressão artística, física ou musical, na matemática, nas competências de liderança ou autonomia, a vestir-se, a vestir os irmãos, a lidar com adultos bêbados diariamente… E tem que ser valorizada nisso. Que é tanto!
Outra necessidade essencial a ser satisfeita é a necessidade de auto-determinação. É importante que a criança sinta que tem possibilidade de escolha e autonomia. Isto não significa ausência de limites ou estrutura, muito pelo contrário. Os limites são aquilo que permitem à criança estruturar-se mentalmente. O que significa é que o adulto, sendo o "contentor" da criança na concepção teórica de Winnicott, estabelece os limites a fim de dar e restabelecer os sentimentos de segurança e protecção essenciais para o desenvolvimento da mesma, permitindo, ao mesmo tempo, que esta exerça a sua autonomia dentro desses limites.
Por exemplo, a partir dos 4 anos muitas crianças, especialmente as meninas, querem escolher a roupa para vestir. Sugere-se que não se diga: podes vestir o que quiseres, tu é que escolhes. O que se sugere é que se dê duas opções (limite imposto pelo adulto, função contentora e securizante) e, dessas duas opções, a criança poderá escolher uma (promoção da autonomia). Ou seja, o adulto deverá dizer: Percebo que queres escolher a tua roupa. Tens aqui estas duas camisolas. Podes escolher uma delas, a que preferires vestir hoje ou gostares mais.

Por último, a necessidade de relacionamento é fundamental para a criança se desenvolver harmoniosamente. E aqui é necessário que a criança estabeleça relações de vinculação seguras, ou seja, relações nas quais se sente cuidada e protegida, sentido igualmente que pode confiar no outro e não se sentindo ameaçada pelo mesmo nem agredida, recorrendo às mesmas como base segura a partir das quais explora o próprio e as aprendizagens e as relações de amizade com os pares.

As relações interpessoais são determinantes uma vez que grande parte da vitalidade da criança, a sua atitude perante o mundo e a vida estão relacionadas com a forma como é e foi ou não amada desde o início da sua existência. O bem-estar ao longo da vida, aliás, o próprio equilíbrio e gosto pela vida encontrar-se-á largamente suspenso na solidez da rede de relações afectivas que a criança venha a estabelecer com os outros.

Um desenvolvimento pleno requer o estabelecimento de relações interpessoais seguras, seja nos primeiros tempos de vida seja mais tarde, no seio da família, trabalho ou tempos de lazer.

No adulto, a satisfação das necessidades psicológicas de relacionamento interpessoal, sentimento de competência e autonomia/auto-determinação também se afiguram cruciais para o sentimento de bem-estar e mesmo para o sentimento de se “sentir vivo”.

Se pensarmos bem, quantas pessoas não perdem o seu sentido para a vida, o seu desejo de viver exactamente porque sentem que nunca são donas de si próprias, nunca têm controlo em nenhum aspecto da sua vida; nunca são competentes em nenhuma tarefa, nem que seja a vestir uma camisola ou a apertar os sapatos; e nunca conseguem manter uma relação de verdadeira vinculação com ninguém? E, no entanto, têm tudo! Têm bons carros, boas casas, dinheiro, heranças, a família perfeita. Mas, paradoxalmente, sente-se uns “sem-abrigo” por dentro.

Muitas destas pessoas sentem-se vazias destas três motivações psicológicas básicas. Não sentem satisfeita a sua necessidade de auto-determinação porque sentem inexoravelmente que há sempre uma mãe ou um pai ou um marido ou uma mulher ou um chefe ou um Estado ou uma Europa ou uma China a mandar nelas!!!

Ou que não sentem satisfeita a sua necessidade de competência porque, ou são demasiado perfeccionistas e acham que está sempre tudo mal, achando que o que fazem só estará bem quando receberem um Nobel ou estão sempre a ser criticadas sentindo-se constantemente mais ínfimas que o virús da gripe (que, mesmo minúsculo, é bastante poderoso!!!)

Ou mesmo porque,  por último, também não sentem satisfeita a sua necessidade de relacionamento pois, normalmente, a manutenção de relacionamentos equilibrados decorre das capacidades de auto-determinação/autonomia e do sentido de competência e segurança/confiança, no outro e no próprio, isto é, não tendo iniciativa ou dependendo demasiado dos outros e não confiando em nós (ou confiando demasiado, o que, em última análise, é uma defesa para a insegurança) e/ou nos outros, dificilmente se consegue satisfazer a necessidade de uma vinculação segura ou manter relacionamentos equilibrados e aprazíveis para o próprio e para os outros.

Só saindo de mim para o outro, de mim para o mundo, de mim para algo maior que eu poderei, talvez, matar essa fome de sentido.

Se estivermos sempre a pensar no que podemos esperar da vida, dos outros e do mundo em breve morremos à fome.

Porque talvez a pergunta certa seja: o que é que a vida espera de mim, o que é que eu posso ainda fazer pelos outros e pelo mundo? É isso que me pode encher de sentido, não o contrário. Nós estamos biologicamente concebidos para procurar, não para ficar à espera. Temos um corpo adaptado para o movimento, não para estar sentado no sofá a ver a vida dos outros. Os nossos olhos gostam de olhar em frente, não de olhar para cima à espera que o comer, a renda da casa e o afeto dos outros caia do céu! Nós estamos biologicamente adaptados para a ação, não para a passividade.

 Nós aguentamos dilúvios de lágrimas se sentirmos que o sofrimento tem um sentido. Aguentamos a tristeza se sentimos que temos para quem ou porque chorar. O que não aguentamos é o vazio. O desespero do sofrimento sem direcção nem sentido.Nós somos seguidores de causas, de amores profundos, temos um coração musculado que aguenta olhares em frente, esperanças fortes, um coração pronto para enfrentar os "comos" desde que haja um "porquê".

Mas há olhares, almas e corações a quem falta um porquê... E isso tira a força para enfrentar os "comos" do dia a dia!

Eis a razão porque, tantas e tantas vezes, passam pelas nossas vidas pessoas que são autênticos desertos de afeto ou de vontade ou de esperança ou de motivação. Pessoas que, à primeira vista, aparentam ter tudo. E são paupérrimas.
Porque há, de facto, muito mais mendigos do que aqueles que vemos à noite nas ruas de Lisboa…São aqueles que perderam o sentido de tudo e jazem à fome por um sentido de si e do outro, do eu e do mundo. 
E essa fome é muito mais difícil de matar. Não se mata com pão. Mas é a que mata mais depressa.



 
(Dr. Viktor Frankl em entrevista)



 

9 comentários:

  1. Finalmente um blogue que fala de coisas bem mais importantes do que moda e mais moda, malas Chanel pra cá e pra lá. Coisas sérias que nos fazem pensar e dar reviravoltas aos neurónios mas escritas numa linguagem clara e bem humorada. Filosofia ou Psiquiatria assim, vale a pena! Fiquei fã! Parabéns ;)

    Inês Barbosa

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    1. Cara Inês,
      fico muito grata e feliz pela gentileza do seu comentário embora não me considere merecedora de tanto. Na verdade, quem me dera conseguir escrever alguma coisa sobre moda:) Significaria que parte de mim ainda estava minimamente ligada à realidade de hoje em dia e, ao menos, eu sentir-me-ia um pouco mais "normal"!!!Perdoe-me o desabafo mas para alguém como eu que só não lava o cabelo com sabão azul e branco porque senão parecerá a mulher das cavernas, algumas dicas de moda não fariam mal nenhum!!! Assim como acho que às "meninas Chanel" um pouco de contacto com a realidade do país, um pouco de Filosofia, Bom Senso e Psiquiatria também não faria mal!!! Abraço terno:)

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  2. Coincidência?? Há poucos dias li sobre o Frankl e o seu "Man's Search for Meaning" (aqui). Parece que tenho de ler esse livro!!

    Obrigado pelas partilhas!! E pela mensagem amiga do dia 24! :)

    Já não vinha aqui há uns dias. Gostei particularmente do Hallowdeen da Bia e do primeiro dia na primária do Tiago!

    Beijinhos!!

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  3. Querido Buli,

    quantas saudades!!! Quantas, quantas, quantas!!!:)
    Adorámos os postais! O Tiago anda a coleccionar os teus selos e os postais que mandas e chama-lhe: A Volta ao Mundo do amigo Buli!:)
    Os mesmos são sempre um mote para falarmos dos locais, para irmos ao mapa, para contarmos histórias...É formidável!
    Fiquei feliz por teres gostado das partilhas!
    Abraço infinito!!!! Com Enormeeeeeeeeeeeeeeeeeeeee afecto de todos nós :)
    Mónica

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  4. Muito Bom!!!
    Obrigado Mónica! ;)

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    1. Que mensagem tão simpática e generosa!
      Agradeço com um sorriso infinito no olhar :)

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  5. Aprendi, reflecti e fiquei deveras motivado. Soberbo, como já nos habituaste!
    Awesome! Bjs, Bjs,Bjs

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  6. Mais verdade não poderia ser! Plenamente de acordo, mas para além de fazer refletir e bem, ainda temos o nosso maior obstáculo, vencer a inércia!
    beijinhos,

    João

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