sexta-feira, 5 de outubro de 2012

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Poder-se-ia dizer que os seus olhos quase lhe galgavam os passos… Não queria chegar atrasado. Era o seu primeiro dia de escola e o primeiro ano na primária.

Porém, essa enorme vontade de chegar que quase lhe saltava das órbitas, foi súbita e irremediavelmente esmagada pela multidão ondulante de pais e crianças, mochilas e lancheiras, cartolinas, malas, malinhas, sacos e saquinhos, totós, rabos-de-cavalo, ganchinhos Kitty, bonés, risos e vontades, medos e choros que, em amálgama, se acotovelavam junto ao portão…

O seu rosto que, até agora, brilhava de cores estivais, rosto moreno de frescura curiosa, entusiasmo rosado, quentura dérmica de um verão bem passado e atitude fervorosa de “estou pronto para tudo”, transformava-se agora num rosto gelado de janeiro, um inverno de alma.

Um misto de pânico e o desabar das expectativas traduziram-se num olhar de neblina, nuns olhos densos e pesados de nuvens cinzentas à beira do choro.

Conteve-se.

Talvez porque a irmã, mais pequena, estivesse ali ao lado. Afinal, a bebé da família ainda era ela, ou não fizesse ele questão de lhe o lembrar, em jeito de ritual provocatório, todo o santo dia.

Ou talvez mais porque o conteúdo do súbito chamamento efusivo da Raquel, colega da pré-escola, lhe espicaçou o que de altivez e vaidade masculina já pode existir do alto dos seus seis anos:

 - Olh´ó Tiago!!! Tiago!!!! Tiago!!!! Olh´ó Tiago, tia, é o Tiago, tia. Anda. Tiago!!! Tiago!!!! Estás bué giro!!!!!! Eh, tens uma mochila dos Beyblades!!!

- Raquel, Raquel!! Mãe, Bia, é a Raquel!…
Olha, trago a lancheira dos Beyblades! Queres ver?
E trouxe Chipicaos com tatuagens dos Beyblades… mas tenho que comer as peras. E tu, trouxeste Beyblades?
Olha, a tua cartolina é da cor da minha. Boa!

- Boa! Tiago, trouxeste tatuagens Chipicao dos Beyblades prá gente por os dois? Oh tia, o Tiago é o meu namorado, não és Tiago? Anda, anda… Vamos prá sala, sabes que somos da mesma sala?”

O Tiago arregala os olhos! Todo ele é riso colado à pele!

Pânico esquecido, expectativas reencontradas, mãe adeus; então e adeus à mana?!; ah já me esquecia, tchau Bia bebé, bebé és tu,  tchau Luna (a cadelinha labradora retrivier que todos os dias o leva à escola!)…

 
E lá foi…Aliás, lá foram, ele e a Raquel.

Cartolinas a abanar nas costas, a sair das mochilas, como se fossem caudas caninas a expressar contentamento. Lancheiras a ondular nas mãos, passos quase saltitantes, a acompanhar o entusiasmo do coração, a alma junta a pedir começo.

 
Foi assim o início do primeiro ano escolar do Tiago.

Para trás ficam os dias a saber a infinito. A partir deste dia, têm o sabor a ponteiros de relógio, o sabor a toques de entrada, a toques de saída para o recreio, a toques de saída das aulas, a toques de entrada na vida onde as letras também falam, onde os números deixam de ser riscos para terem peso e quantidade, comprimento e largura, volume e altura, onde o 2 deixa de ser um cisne para ser a forma melhor de dizer Eu e TU, nós os Dois ou “o número de tatuagens de Beyblades que trouxe hoje: 2 (duas), uma para tu pores no meu braço e outra para eu pôr no teu”…

Porque, no essencial, tudo se inicia assim, todas as aprendizagens, tudo o que é verdadeiramente importante aprender na vida… seja o Português, a Matemática, o Estudo do Meio, o “dividir a meias”, o partilhar, o amar…o não ser estúpido…tudo se inicia na relação!
(Recordo-me, aliás, de uma sábia frase de Santo Agostinho quando lhe perguntaram sobre o que era mais importante aprender na vida, se era Matemática ou Latim, ao que ele respondeu: “O importante é não ser estúpido.” Eis tudo!!!)

 

O importante é essa disponibilidade interna e permanente para aprender... É essa capacidade desarrogante (mas elegante!)  de nos “desestupidificarmos” em qualquer momento da vida!
Se é verdade que há muita coisa que  aprendemos sozinhos, aprendemos sobretudo na relação com os outros... Mesmo aquilo que julgamos alcançar exclusivamente por mérito próprio, tem sempre algo de relacional em si... Tem sempre a ver com as relações que guardamos cá dentro, com as pessoas que guardamos do lado certo do coração.
 Acredito, pois,  que é na Relação que a aprendizagem, hoje e sempre, tem os seus mais profundos e cruciais…INÍCIO(S)!!!

( Para quem está curioso, ao toque de saída o Tiago era um sorriso do tamanho do mundo (acho até que maior ainda!!!!)... Todo ele  estava alegre, solto, suado, feliz...
E comentou...

-Oh mãe, sabes que afinal é mesmo bom ter uma mana como a Bia?
- Então porquê, filho?
-Dá jeito prá escola...
- Jeito prá escola...

- Explica lá isso...
-Então... A Bia é mandona, chatinha que se farta e quer sempre que eu ponha tatuagens de princesas no meu braço... Depois quer dar-me biberão, quer quer eu faça cara de bebé, que finja que choro, que "ressonho", pensa que eu sou o "Necuco" dela, percebes? Mas isso até dá jeito...
-Ai sim?!!
- É que todas as meninas da minha escola são como a Bia...São muito mandonas mas eu já sei do que elas gostam...Elas gostam que eu faça cara de Necuco!!! Assim, vês mãe?!
Ficam logo minhas amigas!
 Até a Raquel perguntou se eu queria o "esparguete à "Bananesa"" do almoço dela! :)

 
 
 
 

3 comentários:

  1. Ainda no começo destas linhas que me destes o privilegio de as saborear, já começava a imaginar o que poderia surgir...

    Nem mais, conseguiste trazer a minha mais recôndita memória à superficie - o meu primeiro dia de aulas. Felizmente também não o esqueço e duvido quem alguém o consiga esquecer.

    Estava a ler as tuas palavras e de certa forma a rever-me nelas, não pelos "Beyblades", pelas amigas/conhecidas ou até mesmo "namoradas", isto porque no nosso tempo não existia pré-escola nem infantários ou ATL´s, quando íamos para escola ainda não conhecíamos ninguém; mas sim pelo facto de teres dito que o Tiago chegou feliz á escola, esteve quase a verter umas lágrimas e acabou a sorrir...
    Devido a alguns ligeiros acontecimentos o Tiago foi alvo de um turbilhão de emoções. É por isso que ele não irá esquecer este dia de certeza....

    Ai que saudades de ser criança novamente...
    Ai que saudades da inocência...
    Ai que saudades da não responsabilidade...

    É por isso que nós adultos com o passar dos anos vamos ficando cada vez mais enfadonhos, tristes e alguns chegam mesmo ao estado depressivo, porque a verdadeira alegria vive-se desde o primeiro dia em que respirámos...

    E elas vão-se dissipando, vão-nos abandonando com o passar dos anos e dão lugar à saudade...

    BJS
    José Borges

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  2. José,
    não imaginas como fiquei contente com o teu comentário, nomeadamente pelo facto do presente texto ter suscitado em ti boas memórias!
    Quanto à perda de alegria, força e entusiasmo que vai acontecendo no decorrer da idade adulta, pergunto-te: será sempre assim? Afinal, tu és a prova viva de que o oposto também pode acontecer!!!
    "Não ser enfadonho" também pode ser uma escolha, possível praticamente em qualquer idade e circunstância. Ou seja, envelhecer é inevitável mas ficar velho é opcional!:) BJS Mónica

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    1. Olá Querida Mónica

      Tens toda a razão, aliás eu faço atletismo não só porque gosto mas também porque além de outros tenho um lema para encarar a vida..."parar é morrer"
      gosto de me manter activo não só fisica como também mentalmente.
      Eu não estou velho, apenas estou farto de certas coisas que vou vendo diariamente, sempre os mesmos protagonistas - os mesmos "vilões" e as mesmas "vitimas". A história do filme nunca muda, começa a saturar.

      Mas que estou eu para aqui a dizer, supostamente deveria estar feliz em vez de me lamuriar. Ter uma amiga como tu é deveras gratificante e não tens de forma alguma de aturar os meus desvaneios.

      Mil desculpas.
      Bjs
      José

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