terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Cancro rosa ao peito


O diagnóstico veio dias depois, poucos, de viver a sua primeira paixão de…Inverno.
O gelo das palavras ditas pelo colega de ginecologia solidificaram-lhe o coração quente pela emoção de, pela primeira vez, ousar render-se ao presente, ousar viver um pouco sem as correntes dos princípios, ousar principiar-se sem fim… Mas foi exactamente a sensação de princípio do fim que lhe surgiu quando ouviu: Carcinoma…Fase II… Cancro da mama.
O choque tornou-a momentaneamente irracional. A sua postura sempre tão certa, sempre tão segura, diluiu-se em lágrimas e soluços…
Poderia mesmo estar a acontecer-lhe? A ela? A ela que nem fumava, que nunca se embriagara senão de emoções por ser tão intensa no viver e no dar, ela, que tão raramente adoecia, que tinha notável resistência, que passara quase metade da vida longe das loucuras e próxima dos livros, que praticara sempre desporto, que não se dava a excessos a não ser de afecto???…
Era a ela, sim, era a ela que o cancro rosa vinha tocar…
Claro que havia muitas outras elas, não era a única, claro, sabia-o…Mas, naquele momento, estava mais só que nunca…Era só ela e o que queria tirar de imediato de dentro de si…
Pediu a veracidade em relação ao futuro…com gelo. E com gelo ela lhe foi servida: temos que operar…primeiro, excisão do tecido cancerígeno na mama direita e nódulos linfáticos. Não sabemos se mastectomia…mastectomia.
Por ironia ela, sempre tão obsessiva na ortografia, escrevera mal, pela primeira vez, esta palavra num exame: masteocotomia. E, desde aí, sempre que a tinha que escrever, escrevia-a mal, talvez despropositada pela ansiedade ou propositada pelo destino, não se saberá. Mas era  como se a quisesse pronunciar lentamente. Como se, já antes de a conhecer na primeira pessoa, a quisesse pronunciar com o pensamento, mastigar, digerir…
Radioterapia? – Pôs de imediato na mesa a pergunta que, um segundo depois, lhe pareceu retórica. Mas como nenhuma pergunta é tão difícil quanto aquela cuja resposta é óbvia, o colega demorou na mesma, talvez já rendido àquele olhar solícito, longo, denso, que lhe pedia um não a saber que sim.
O sim veio nas entrelinhas dum eufemístico: “é quase certo!”… Ficou por ali. Imaginou-se de imediato deformada, sem o seu cabelo longo, sem pêlos, sem mulher fora e dentro dela. Mesmo que, mais calma, pensasse que talvez nem viesse a ser assim, era assim.
E despachou-se a resolver a data da operação, em Fevereiro, depois de aprontar notas, trabalhos por entregar, trabalhos por fazer. Demorou-se, muito, mesmo muito, no contar…
Contou apenas a três pessoas… Nenhuma delas óbvia. A última, aliás, foi a pessoa que tinha conhecido no final e princípio dos anos, o anterior e o presente, respectivamente.
Pessoa que a tinha feito sorrir, rir, brincar, que lhe tinha tirado o fôlego. Pareceu-lhe verdadeira a frase de que a vida não deveria ser medida pelo número de vezes que respiramos mas pelos lugares e momentos capazes de nos tirar o fôlego…E ele parecia tão boa pessoa. Tão meigo, doce. Mas complicado. Abandonante. Fugitivo.Fugidio. O sentimento de desamparo foi-lhe ainda mais pungente quando lhe entregou, em palavras, ao telefone, a razão de ser de, de repente, ela, fugidia também, se mostrar mais solícita, irracional, às vezes, pouco paciente, tanto.
Contou-lhe o diagnóstico sem conseguir conter as lágrimas…E foi ao ponto de, pouco mais tarde, lhe pedir o “impedível”, mesmo sabendo que iria deitar tudo a perder. Mas, como não se pode perder o que já está perdido, resolveu pedir. Pedir que naquele dia não houvesse impossíveis, só amor. Mas não houve o último e houve, como já era hábito, o primeiro.
A sensação de ridículo, mágoa, cansaço, estupidez, desistência definitiva, tocou-lhe como uma flecha. Abriu-se-lhe os olhos para o evidente, que sim, que há pessoas assim, que o mundo lá fora não é generoso nem justo como imaginara, que cada um vive para si e consigo e mais nada.
Felizmente, desistiu…Ou renunciou…Ou deixou…Ou…desinteressou-se.
Fez as pazes consigo própria: antes ser a flor pisada que o pé que pisa. Não se arrependera de nada mas também não desejava mais nada vindo dali. Jardim encerrado.
Concentrou-se em voltar à vida antes de a poder perder também. Havia tanto que valia tão mais a pena, tão mais o interesse dela, a atenção dela, o afecto dela.
Olhou em volta e viu as pessoas que lhe enchiam a vida e, verdadeiramente, a enchiam de vida. E, essas sim, valiam a pena, podia contar com elas incondicionalmente. Essas não lhe iriam dar impossíveis, só amor…
E, na verdade, sentiu-se e soube-se tão profundamente amada…
Continuou a acreditar que, enquanto houvesse estradas para andar, iria continuar.
 E decidiu-se por fazer valer cada dia neste mundo já que, como lhe diria uma amiga, mil no outro de nada valem. ..
E seguiu, ainda com o cancro rosa ao peito, mas sem deixar que ele lhe fizesse a vida negra…


3 comentários:

  1. A tua escrita arrepia-me sempre de tão verdadeira e sentida que é.

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  2. Olhos humedecidos... pois um homem não chora! (só às vezes) :)

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  3. Podemos ler e reler este texto uma, duas, mil vezes, e ele sempre nos tocará o coração, sempre nos encherá os olhos de lágrimas, pela veracidade, pela entrega, pelo sentido de cada palavra. Sentimos o coração bater com a autora, sentimos o seu medo como sendo nosso também, a sua incredulidade, o seu desespero, assim como a sua esperança e a sua força de continuar a viver. E tb nós acreditamos, e passamos a desejar viver cada dia a mil por cento. Apercebemo-nos que o que importa é a vida, vivendo amando e sendo amado. Que seja assim sempre...

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