quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

De Roma com... Clamor!


O egoísmo pessoal, o comodismo, a falta de generosidade, as pequenas cobardias do quotidiano, tudo isto contribui para essa perniciosa forma de cegueira mental que consiste em estar no mundo e não ver o mundo, ou só ver dele o que, em cada momento, for susceptível de servir os nossos interesses." José Saramago

Roma, como a vida, pede-nos o olhar inteiro e aberto. Pede-nos que não padeçamos dessa " perniciosa cegueira mental" a que Saramago se refere. Pede-nos o regresso à nossa essência e, com isso, o confronto com o que temos de mais humano e divino.
Roma pede-nos outra sensibilidade...Ao outro e ao mundo.

Por vezes esquecemos que os nossos olhos podem detectar dez milhões de cores diferentes. E, no entanto, nós tendemos a viver uma vida sempre pincelada com os mesmíssimos tons, a percorrer sempre as mesmas paisagens já baças e foscas. Ao pensar que 80% das nossas memórias são o resultado do que vemos, daquilo que nos entra pelos olhos dentro, devíamos ter um cuidado acrescido com aquilo que queremos ver ao longo da vida. 

E uma vez que aquilo que vemos também depende daquilo que somos, temos, muitas vezes, que "limpar" o olhar para poder contemplar os muitos pontos de luz que a vida nos dá. 

Quantas e quantas vezes não estamos nós próprios cegos para a novidade do mundo? Quantas e quantas vezes não estamos nós de olhos fechados para a novidade do outro? Quantas e quantas vezes não vivemos de retina fechada para dentro? 

Grandes mudanças começam quando mudamos a nossa forma de olhar para as pequenas coisas. Porque mudar não significa ser outro. Significa, antes de tudo, fazer uma experiência mais autêntica de nós próprios. Significa encontrarmo-nos, estarmos mais conscientes dos nossos limites, das nossas dificuldades e contradições, mas também das nossas forças e capacidades. 

Significa estamos mais conscientes deste pequeníssimo milagre que somos, daquilo que nos torna por vezes difíceis, impossíveis, incontornáveis, mas também daquilo que nos torna únicos. Significa estarmos mais conscientes do outro e dos outros. Do milagre do outro. Das suas dificuldades. Impossibilidades. Mas também da sua luz. E do seu lugar único no mundo.

É verdade que este processo de mudança exige esforço. Exige um autêntico renascimento! E aqui não há partos indolores nem ajuda de epidurais...É mesmo preciso esbracejar. 

Há, porém, cidades que ajudam... Pelo tempo que nos dão e pela beleza aliada à sabedoria que têm dentro de si. 

Roma tem nela o que a alma precisa para não endurecer numa vida meramente movida a tarefas e resolução de problemas.Precisamos efectivamente do belo (e de tempo para o apreciar) para não nos perdermos na aridez do pó dos dias.  Uma beleza que pode estar na Arte, na Literatura, na Ciência, em encantos da vida de todos os dias... 

Roma fica-nos no corpo inteiro… Pelo espanto com que nos deslumbra o olhar…Pela beleza com que nos prende tanto os sentidos como a alma. São raras as belezas que não cansam. São raras as belezas que não passam com o passar do tempo. São raras as belezas que se reinventam. São raras as belezas que se reecontram em si próprias pela densidade que têm. São raras as belezas que saciam. E Roma tem essa beleza. Rara, portanto. Não há nela superficialidade. Também não há consenso nem linearidade nela, tampouco. Há densidade, estrutura e história. Há imponência. Há melancolia. Há uma Roma ocre. Há uma Roma celeste. Há uma Roma que é uma manhã, refrescante, jovial, agitada. Há uma Roma entardecida e cadente. Há uma Roma com recantos onde parecem respirar todos os sons da vida. Há uma Roma onde parecem culminar todos os tons de luz. E toda a água. E todos os desejos de todos os tempos. Há uma Roma que parte. E há sempre uma Roma que fica e que nos fica. Por ser tão intensa, inteira e tão... ela. 

Roma fica-nos por conseguir, por exemplo, autênticos milagres cronológicos como o de ter, por vezes em escassos quilómetros quadrados, séculos inteiros de história dentro. Ou de convocar todas as artes e fulminar-nos com génios como Bernini, Caravaggio e Da Vinci para uma overdose de beleza. Ou de conseguir estender ao seu lado o mais tranquilo mar de olhares, sob essa misteriosa luz tão divinamente límpida e conciliadora das palavras de  Francisco.

Roma tem tanto que qualquer léxico se torna rapidamente exíguo. Sobrará sempre vida a tudo o que dela se conte! E, para quem dela vem, os souvenirs serão redundantes. Esses objectos têm a função de recordar os lugares que visitamos. Mas são exactamente estes lugares, se marcantes, que melhor recordamos. Pelas experiências únicas e singulares que lá vivemos e que o próprio lugar em si propiciou se, dentro de nós, se já tinham aberto mapas para acolher toda a beleza dos vários caminhos que a vida nos pode dar.  

Souvenirs 
desses lugares são, portanto, redundantes. Quão mais sentido não faria guardarmos souvenirs dos dias de todos os dias? Ou, em alternativa, renovarmos a nossa capacidade de nos espantarmos com aquilo que nos é dado diariamente, gratuita e esplendorosamente, e que não está em nenhum museu, galeria, igreja ou monumento. 

Falo da capacidade de nos espantarmos com o milagre de amanhecermos num mesmo momento de céu e num mesmo azul de universo. De nos espantarmos com a beleza como o vento arrasta vozes felizes à distância. Com a beleza como o sol se deita sobre o mar para ir murmurando o anoitecer. Da capacidade de molharmos o olhar com palavras que nos segredam música e de, com música, sentirmos melhor a dimensão das coisas mínimas e amplas. Com a capacidade de nos espantarmos com o recanto súbito de um sorriso doce. De nos espantarmos com o silêncio alargado dos montes. De nos espantarmos com o estremecer do corpo ao primeiro toque de água. De nos espantarmos com o respirar do mar e das ondas. 

Se não perdermos essa capacidade de nos espantarmos, veremos que há muitas Romas na nossa vida e muitas por…viver. Principalmente porque a maior beleza que podemos contemplar é a de alguns gestos. E se há corações que são pedra, há muitos corações que são autênticas…Esculturas!






Apolo e Dafne de Bernini, exposta no Museu e Galeria Borghese (Roma)
(a mais famosa obra-prima de Bernini retrata a ninfa Dafne a fugir do
deus do Sol, Apolo, no momento da sua dramática transformação em árvore)











14 comentários:

  1. Querida Professora, está o MÁXIMO! Temos tantas saudades suas! Venha igualzinha, por favor. Abracinho gigante de quem a adora muito. Catarina Silva

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    1. Querida Catarina, conforme já teve oportunidade de confirmar pessoalmente, claro que vim "igualzinha" (isso será bom?!) embora cada viagem e experiência, positiva ou negativa, nos mude sempre um pouco por dentro e, acima de tudo, acrescente mais horizonte à distância do nosso olhar. Um abraço sempre muito terno.

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  2. Dra Mónica, um beijinho com o encanto de sempre. Ana Filipa Vilas

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    1. Querida Filipa, um grande, grande beijinho infinitamente terno para si e para os seus lindos pequeninos.

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  3. Texto escultural! Culpa de Roma e da autora ou Freud também teve a ver com isto? LR

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    1. Grata:)
      Quanto a Freud... Bem...Na imagem em questão, Freud representava o Inconsciente!!! E, aí sim, terá um pouco sempre a ver com isto e, penso, com grande parte dos comportamentos humanos, mesmo aqueles que se querem totalmente controlados ou...conscientes! Há sempre algo que não controlamos, algo que não entendemos e que desconhecemos em nós, exactamente porque muitas atitudes nossas têm as tais raízes no Inconsciente onde, segundo Freud, está tudo aquilo que desejamos mas não aceitamos, aquilo que pensamos que a sociedade ou os outros não aceitam ou aquilo que foi traumático e que, se trazido para a luz do consciente e, mantido aí, perturbaria todo o nosso quotidiano (daí os mecanismos de defesa, que servem exactamente para manter fora do consciente aquilo que "não queremos" mas que...falham!!!). Tudo isto para dizer que, tal como a imagem que Freud utilizou para descrever a vida psíquica como sendo um icebergue, em que a nossa actividade consciente é apenas a ponta do mesmo, haverá quase sempre um Inconsciente por detrás daquilo que expressamos...artisticamente ou não! Um abraço.

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  4. Sublime, Mónica, sublime!

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  5. Como sempre... maravilhoso, encantador! Mas tenho pena que não tenha mantido o texto na sua primeira e segundas versões e a esse tivesse acrescentado estes tão belos apontamentos sobre Roma, que só quem lá esteve e sentiu a cidade percebe de todo o coração. Beijinhos

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    1. Minha muito querida Diana, apreciei bastante a sua observação e, conforme prometido, recuperei as versões anteriores. Sei o quanto também gostou de Roma como verdadeira admiradora das Artes e Letras que é, o que muito me apraz e entusiasma. Principalmente porque sempre ouvi e ouço comentários, obviamente legítimos, mas que não deixo de considerar redutores e circunscritos, de que Roma "até é "fixe" mas não é mais do que pedra e pintura". Parecem-me redutores, de facto, porque são muitas vezes proferidos por "turistas de programa" que acabam por apenas ver o que é para "turista ver". E Roma, parece-me, é para ser percorrida recanto a recanto, a pé, nos vários pontos cardeais, entre as pessoas (que, aliás, ao contrário do que me diziam, achei fantásticas!), rua a rua, para saborear a pé e deixar pousar o olhar. Roma não é, parece-me, parar apenas pousar, clickar, clickar, comprar, e postar no facebook. E também para olhar toda a arte que ela tem é preciso aprender um pouco. Sim, também para olhar é preciso aprender. Com Caravaggio aconteceu-me isso. Assustava-me de início! Até que comecei a querer entender porque razão era considerado um génio. Então quis aprender. Ser guiada. E cada vez que aprendia mais sobre cada pormenor, sobre cada história de cada quadro, cada vez ganhava mais admiração no olhar. O mesmo aconteceu com Bernini, ainda que aqui o processo fosse esteticamente mais "rápido" pois sempre fui uma grande admiradora de escultura. Admirava Bernini mas à medida que fui captando a genialidade da capacidade de representar expressão e emoção em plena pedra fiquei simplesmente deslumbrada. O David de Bernini, por exemplo, tem uma expressão, um movimento, uma emoção no olhar que põe o seu homónimo de Da Vinci a um canto. E estar perante a genialidade é uma emoção única quase semelhante ao amor. Dá-nos vontade de lágrimas, de estarmos mais vivos dentro de nós, de termos mais esperança no próprio ser humano!
      Beijinho grande no seu coração.

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  6. Professora Mónica, não imagina como tinha saudades de ler tão belas palavras como a professora sempre escreve. Fico com vontade de conhecer Roma e também de ler os outros textos que tinha escrito pelos comentários que li pois deveriam ser belos também. Não sou ninguém para dizer isto mas acho que não devia estar tanto tempo sem escrever pois o que escreve tem grande qualidade. Com muita admiração. Nina (ISEC)

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    1. Querida Nina, palavras belas são as suas! Versões já acrescentadas, com um beijo muito grande:)

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  7. Ocre e melancólica ou celeste e jovial mas linda e muito para lá da pedra. Roma espanta-nos sempre, esse é um dos seus milagres. Foi bom recordar as vezes que lá estive, uma delas num encontro de estudantes de Medicina. Tal como nas consultas, é diferente o seu olhar até sobre uma cidade que para muitos se resume a pedras, um Coliseu, uma Fontana di Trevi, o Vaticano e pouco mais . O seu é um olhar metafórico, personificado, de quem sabe ir além do óbvio e do olhar e é um olhar belo que escreve este texto belo. Muito belo. Parabéns, Dra Mónica. Parabéns! Filipe Santos

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    1. Grata, estimado Filipe.
      E concordo consigo: Roma espanta-nos sempre e isso é, de facto, um milagre! Entre outros, como diz!:)
      Um abraço.

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