Em cada viagem crescemos sempre dentro do nosso tamanho...
Cada pessoa diferente que conhecemos, cada nova palavra que saboreamos nos lábios, cada novo gesto que nos vem calhar às mãos, cada novo sorriso que nos pousa na pele ou cada paisagem nova que nos surpreende a retina, acrescenta-nos centímetros à dimensão da alma.
O mundo guarda sempre novos horizontes à espera de um renovado olhar, com a certeza, porém, que a melhor vista será sempre aquela que conseguimos ter...quando levantamos o olhar do chão.
Penúltimo dia das
férias da Páscoa… O texto impunha-se-lhe…Era impossível adiar mais as palavras…
Era a última tarefa que lhe faltava dos (inúmeros) trabalhos de casa: Uma redação
subordinada ao tema: “As minhas férias da Páscoa” – previsível, portanto, e
impossível de pecar por ausência de substrato narrativo, pois lá aventuras teve
o miúdo!...
Foi então que
ele veio até mim, exatamente no momento em que eu acabara de arrumar a loiçaria
na máquina, e arriscou, arriscou muito, não sei se motivado pelo excelso rubor
benfiquista agora em alta, ou se derreado pelo cansaço das dezanove fichas de
trabalho que fizera herculeamente naqueles quinze dias, entre acampamentos dos
escuteiros, treinos e jogos de basquete, campeonatos de judo, idas a casa dos
amigos, amigos em casa dele, idas a casa dos avós, avós em casa, a irmã a
dar-lhe cabo da paciência, ele a dar cabo da paciência da irmã, etc, etc, etc… :
- “Oh mãe… Não achas que no texto basta escrever:
“ As férias foram boas. O Benfica foi campeão.” Isso vale as férias inteiras,
não achas? Não preciso escrever mais
nada! Não achas? Ele ria-se. Eu pasmava. Ele ria-se outra vez e eu
arrependia-me de já ter arrumado a escumadeira!
Obviamente, não
queria acreditar no que ouvia!!! Então o Benfica ser campeão vale umas férias
inteiras??
Aparentemente
valia!!! Obviamente, eu não queria abafar-lhe a euforia de campeão, legítima,
aliás, até porque também partilhava da mesma mas… Convenhamos…Relativemos…
E o
primeiro acampamento de escuteiros que fizera há uma semana e do qual viera
DELIRANTE?!! E a primeira peça de teatro (atente-se no nome: “O palhaço cueca”!!!”)
que fez com os rapazes (claro!!!) em redor da fogueira em plena noite de lua
cheia, e da qual não parava de falar (e rir!) quando chegou a casa e nos (pelos
menos!) cinco dias seguintes ?
E as máximas dos lobitos que teve que ler a solo
e que lhe deram um frio na barriga mas que lhe aqueceram o coração tal foi o
calor dos aplausos dos companheiros?
E as anedotas que não parava de contar e
recontar e que aprendera na sua primeira noite em plena tenda, em pleno ar
livre, em plena noite escura, em plena Arrábida, em plena vida? E as caças aos ovos que fizemos, com direito a
mãe disfarçada e tudo?
E a primeira vez em que finalmente conseguimos ir todos passear
de bicicleta “sem rodinhas”? (Também a Bia tivera nesta Páscoa as suas
primeiras vezes, nomeadamente o ter aprendido a equilibrar-se definitivamente
em duas rodas…). E a primeira vez que não fizemos panquecas redondas? (Afinal,
porque é que as panquecas têm sempre que ser redondas? Só porque a frigideira o
exige? Isto não será, também, uma boa máxima para a vida?!)
E os dois
patinhos que passámos a ter e que eles, Tiago e Bia, lá conseguiram convencer
os pais a “adotar”? Aliás, os patos são um amor e lá andam pelo jardim todos
contentes enquanto o futuro lago vai tomando forma… O que eu espero é que o
talento incisivo dos meus filhos para escolher nomes se aplique apenas a
anatídeos… A Bia escolheu Ludmila para a pobre patinha. Bem, na verdade, tem
sido uma opinião generalizada de que é um nome divertidíssimo e bem adequado
para uma…pata! A minha (chata) veia psicanalítica é que se pôs a fazer
arqueologia psicológica e a pensar o que é que terá levado a Bia a escolher
aquele nome já que, quando indagada, prontamente esclareceu que não era por
gostar do nome. O que é engraçado é que quando lhe perguntei, da primeira vez,
que nome queria dar à dita ela respondeu: Violenta!!! Só depois, passados uns
minutos, o próprio foi corrigido para…Ludmila!!!!Pois é… Creio que a pobre pata foi, para
sempre, vítima de um lapsus linguae
pois, na verdade, a Bia teria querido chamar-lhe Violeta (da série Violeta),
tal como chama agora a todas as sua bonecas, não fora ter bicado o dedo da Bia quando
esta a tentou abraçar e logo passar de uma patita Violeta a uma pata Violenta! Mais, a
uma pata Ludmila, que é, na série televisiva, a malvada rival da doce Violeta!!!
Enfim, coisas de gajas…
Quanto ao Tiago…Na
escolha do nome que deu ao pato lá estava bem espelhada a tendência masculina
para deixar uma marca e perpetuar a espécie: Tiago JR!!!Só que, neste caso, não sei bem que afinidades
é que o meu filho viu entre ele e o anatídeo!!! (Mas lá que as há, há!!! Será
no grasnar quando está com fome???)
Em suma, por
detrás de um Benfica campeão houve muitos jogos, assim como por detrás deste último
dia de férias da Pás coa houve muitos dias. Dificilmente um texto resumirá o
que foram esses dias. Mas nunca uma frase apenas e só lhes fará justiça, mesmo
que seja a de um Benfica campeão.
O nosso juízo de
arrumação e remate é, quase sempre, enganador. Tendemos, tantas vezes, a querer
arrumar tudo e mais alguma coisa em categorias de importância e prioridade:
O Benfica campeão é mais importante que uma panqueca triangular com mel e
canela. Será? O Benfica campeão é mais importante que o “palhaço cueca” em
noite de lua cheia, à luz da fogueira, em plena Arrábida. Será? O Benfica campeão
é mais importante que livrarmo-nos das quatro rodinhas e finalmente
começarmo-nos a arriscar o equilíbrio nas duas rodas da vida. Será? Será que um
Amo-te é mais importante do que um Gosto Tanto de Ti? Será que um
Guerra e Paz de quinhentas páginas é mais importante do que um Principezinho de
sessenta? Será que o destino é mais importante que o caminho?
Pessoalmente,
acho sempre as perguntas muito mais
interessantes do que as respostas. Exatamente porque abrem espaços para o
pensamento. Deixam em aberto, imagem que é, no fundo, a imagem da própria vida:
algo em aberto, o espaço do inacabado, dos eternos começos. Até porque a
própria vida é, por essência, viva! É florescente! É uma sucessão infinita de
inícios onde, ao lado do previsto, irrompe o imprevisível que precisamos de
aprender a acolher…
Talvez por isso,
quando o Tiago me voltou a perguntar: “Então, mãe, o que é que achas que eu
devo escrever no texto?”, eu tenha respondido simplesmente: “ Olha, sabes quem é que te pode mesmo ajudar a responder a essa pergunta? O "palhaço-cueca!”…
Admito que, enquanto apaixonada confessa das Ciências Naturais, nunca me interessei particularmente
por Economia a não ser a economia implicada na escolha de fraldas, leites, iogurtes, fatos de treino e todos os consumíveis de marca branca com que se possa educar dois filhos interiormente ricos por dentro mas económicos por fora; a implicada nos trajectos diários da vida e nos consumíveis de uma alma que não quer morrer estúpida ou a implicada, nos meus tempos de trabalhadora-estudante (não o irei ser sempre?!), em conseguir que dois contos (que eram tudo menos de fadas!) dessem para sobreviver durante a semana e neles coubessem, com as devidas acrobacias matemáticas que a necessidade inspira, alimentação, transportes, livros e fotocópias, livros e fotocópias, livros e fotocópias, vestuário (sim, porque os estudantes também precisam de vestir qualquer coisa! E, que eu saiba, só mesmo numa praia em Timbaba, João Pessoa, é que é permitido as pessoas, estudantes ou não, "vestirem-se" com resmas de papel), consultas esporádicas (pois é, quem diria que os estudantes também adoecem!) e, por vezes, alojamento. Ultimamente, porém, tenho-me deparado com insólitas mudanças face
às quais esperava que um conhecimento
mais aprofundado naquela matéria me pudesse esclarecer (na falta de um motivo
mais “iluminado” do que a já tão ensombrada crise )…
Nomeadamente, para esclarecer a
“semi-privatização” de todo o apoio médico aos estudantes da Universidade de
Lisboa e desvinculação respetiva dos serviços de Ação Social, com um aumento
execrável dos preços das consultas das várias especialidades, o que tem
conduzido a que muitos estudantes, principalmente os mais carenciados, se vejam
privados de um apoio (e direito!) fundamental
- o apoio à saúde e promoção do bem-estar – o qual
tem sido, aliás, tantas vezes,
crucial para o prosseguimento e conclusão com sucesso de tantos percursos
académicos…e de vida!
Se aprendi bem, um dos clássicos da
economia moderna, Adam Smith, resumia assim o funcionamento do sistema
económico: devemos o nosso pão fresco diário não ao altruísmo do padeiro, mas à
sua ganância. Ou seja, é graças à ambição do ganho que os bens de que
precisamos, por exemplo, chegam às prateleiras dos supermercados. Esse dado é
aceite e consensualmente aceitável. Mas o que se coloca aqui é, porém, de outra
natureza e envolve uma reflexão urgente. Claro que não perde validade a justa
expectativa que os serviços de apoio à saúde dos estudantes e o respetivo
trabalho dos profissionais envolvidos nesse apoio produza lucro (ou não produza
prejuízo). Mas este processo de reajuste dos serviços não pode ficar unicamente
dependente daquilo que Adam Smith chamou “a ganância do padeiro”. Isto porque
estamos num campo que é não só económico e financeiro, mas também é humano e
cultural.
Porquanto, é preciso mudar aqui,
talvez, a própria lógica dominante do lucro ou prosperidade, que os identifica
com enriquecimento material. Que lucro terá uma Universidade cujas receitas do
seu centro de saúde aumentam, mas cuja taxa de sucesso académico dos alunos
diminui? Que lucro terá uma Universidade que vê as receitas a crescer e o
número de suicídios nas residências a aumentar? Que lucro terá uma
Universidade cujos estudantes abandonam os cursos no primeiro ou segundo ano
por dificuldades de adaptação, ansiedade grave, depressão ou por se fecharem isolados em quartos
dias, semanas, meses, em processos inexoráveis de auto e hetero destruição?
Que
lucro terão as famílias que depositaram, muitas vezes, as economias (e sonhos) de uma vida nessa mesma Universidade? Que lucro teremos todos nós? Mas,
principalmente, que lucro terá aquele a quem lhe é diminuído o direito de
verdadeiramente enriquecer em conhecimento, desenvolvimento pessoal e em
humanidade, propósito último de uma Universidade que se pretende para todos?
Repensar o que consideramos vital e
prioritário para aqueles que serão os verdadeiros cidadãos do mundo e cidadãos
do futuro, é, pois, essencial. A sustentabilidade económica requer (talvez, primeiro que tudo) sustentabilidade psíquica. Não é por acaso que o
consumo desenfreado não é outra coisa senão uma bolsa de compensações. As
coisas que se adquirem são, obviamente, mais do que coisas: são promessas que
acenam, são protestos impotentes por uma existência que não satisfaz, são
ficções do nosso teatro interno.
Em suma, mudar sim, mas limitar só
para alguns a possibilidade de aceder ao essencial, não.
E este facto e a própria palavra
Economia (do Grego OiKonomia, que
significa literalmente “norma ou administração da casa”), que começou por
conhecer um uso profano em autores como Xenofonte – que utiliza a sugestiva imagem
da articulação dos dançarinos numa roda para falar do controle e da precisão
necessários ao seu bom funcionamento), acabaram também por me ajudar a
compreender porque razão uma das pessoas mais admiráveis e uma das minhas
grandes referências profissionais destes doze anos no Centro de Saúde da
Universidade de Lisboa, se recusou a continuar no mesmo. Efectivamente, face a esta situação e com as condições de "normalização da casa" agora impostas, o seu trabalho (excelente, aliás, e talvez um dos mais distintos e meritórios no panorama da Psiquiatria a nível nacional), tantas e tantas vezes realizado por puro
amor à profissão, aos alunos e às diferentes minorias que, não fora ali, e nunca
encontrariam resposta pronta e eticamente adequada no Sistema Nacional de
Saúde, deixaria de fazer sentido.
E a verdade é que, nesta Economia,
ainda há, felizmente, aqueles que se recusam a ser meros dançarinos quando a roda
está disfuncional! Outros vão mantendo a dança . Outros há que tentam melhorar
a dança para que a roda melhore também. Para bem da(s) casa(s). E de todos.
O egoísmo pessoal, o comodismo, a falta de generosidade, as
pequenas cobardias do quotidiano, tudo isto contribui para essa perniciosa
forma de cegueira mental que consiste em estar no mundo e não ver o mundo, ou
só ver dele o que, em cada momento, for susceptível de servir os nossos
interesses." José Saramago
Roma, como a vida, pede-nos o olhar inteiro e aberto. Pede-nos que não
padeçamos dessa " perniciosa cegueira mental" a que Saramago se
refere. Pede-nos o regresso à nossa essência e, com isso, o confronto com o que
temos de mais humano e divino.
Roma pede-nos outra sensibilidade...Ao outro e ao mundo.
Por vezes esquecemos que os nossos olhos podem detectar dez milhões de cores
diferentes. E, no entanto, nós tendemos a viver uma vida sempre pincelada com
os mesmíssimos tons, a percorrer sempre as mesmas paisagens já baças
e foscas. Ao pensar que 80% das nossas memórias são o resultado do que
vemos, daquilo que nos entra pelos olhos dentro, devíamos ter um cuidado
acrescido com aquilo que queremos ver ao longo da vida.
E uma vez que aquilo que vemos também depende daquilo que somos, temos, muitas
vezes, que "limpar" o olhar para poder contemplar os muitos pontos de
luz que a vida nos dá.
Quantas e quantas
vezes não estamos nós próprios cegos para a novidade do mundo? Quantas e
quantas vezes não estamos nós de olhos fechados para a novidade do outro?
Quantas e quantas vezes não vivemos de retina fechada para dentro?
Grandes mudanças começam quando mudamos a nossa forma de olhar
para as pequenas coisas. Porque mudar não significa ser outro. Significa, antes
de tudo, fazer uma experiência mais autêntica de nós próprios. Significa
encontrarmo-nos, estarmos mais conscientes dos nossos limites, das nossas
dificuldades e contradições, mas também das nossas forças e capacidades.
Significa estamos mais conscientes deste pequeníssimo milagre que
somos, daquilo que nos torna por vezes difíceis, impossíveis, incontornáveis,
mas também daquilo que nos torna únicos. Significa estarmos mais conscientes do
outro e dos outros. Do milagre do outro. Das suas dificuldades.
Impossibilidades. Mas também da sua luz. E do seu lugar único no mundo.
É verdade que este processo de mudança exige esforço. Exige um
autêntico renascimento! E aqui não há partos indolores nem ajuda de
epidurais...É mesmo preciso esbracejar.
Há, porém, cidades que ajudam... Pelo tempo que nos dão e pela
beleza aliada à sabedoria que têm dentro de si.
Roma tem nela o que a alma precisa para não endurecer numa vida
meramente movida a tarefas e resolução de problemas.Precisamos efectivamente do
belo (e de tempo para o apreciar) para não nos perdermos na aridez do pó dos
dias. Uma beleza que pode estar na Arte, na Literatura, na Ciência,
em encantos da vida de todos os dias...
Roma fica-nos no corpo inteiro… Pelo espanto com que nos deslumbra
o olhar…Pela beleza com que nos prende tanto os sentidos como a alma. São raras
as belezas que não cansam. São raras as belezas que não passam com o passar do
tempo. São raras as belezas que se reinventam. São raras as belezas que se
reecontram em si próprias pela densidade que têm. São raras as belezas que
saciam. E Roma tem essa beleza. Rara, portanto. Não há nela superficialidade.
Também não há consenso nem linearidade nela, tampouco. Há densidade,
estrutura e história. Há imponência. Há melancolia. Há uma Roma ocre. Há uma
Roma celeste. Há uma Roma que é uma manhã, refrescante, jovial, agitada. Há uma
Roma entardecida e cadente. Há uma Roma com recantos onde parecem respirar
todos os sons da vida. Há uma Roma onde parecem culminar todos os tons de luz.
E toda a água. E todos os desejos de todos os tempos. Há uma Roma que parte. E
há sempre uma Roma que fica e que nos fica. Por ser tão intensa, inteira e
tão... ela.
Roma fica-nos por conseguir, por exemplo, autênticos milagres
cronológicos como o de ter, por vezes em escassos quilómetros quadrados,
séculos inteiros de história dentro. Ou de convocar todas as artes e
fulminar-nos com génios como Bernini, Caravaggio e Da Vinci para umaoverdosede beleza. Ou de conseguir estender ao
seu lado o mais tranquilo mar de olhares, sob essa misteriosa luz tão
divinamente límpida e conciliadora das palavras de Francisco.
Roma tem tanto que qualquer léxico se torna rapidamente exíguo.
Sobrará sempre vida a tudo o que dela se conte! E, para quem dela vem, ossouvenirsserão redundantes. Esses objectos têm
a função de recordar os lugares que visitamos. Mas são exactamente estes
lugares, se marcantes, que melhor recordamos. Pelas experiências únicas e
singulares que lá vivemos e que o próprio lugar em si propiciou se, dentro de
nós, se já tinham aberto mapas para acolher toda a beleza dos vários caminhos que
a vida nos pode dar.
Souvenirsdesses lugares são, portanto, redundantes. Quão mais sentido não
faria guardarmossouvenirsdos dias de todos os dias?
Ou, em alternativa, renovarmos a nossa capacidade de nos espantarmos com aquilo
que nos é dado diariamente, gratuita e esplendorosamente, e que não está em
nenhum museu, galeria, igreja ou monumento.
Falo da capacidade de nos espantarmos com o milagre de amanhecermos num mesmo
momento de céu e num mesmo azul de universo. De nos espantarmos com a beleza
como o vento arrasta vozes felizes à distância. Com a beleza como o sol se
deita sobre o mar para ir murmurando o anoitecer. Da capacidade de molharmos o
olhar com palavras que nos segredam música e de, com música, sentirmos melhor a
dimensão das coisas mínimas e amplas. Com a capacidade de nos espantarmos
com o recanto súbito de um sorriso doce. De nos espantarmos com o silêncio
alargado dos montes. De nos espantarmos com o estremecer do corpo ao primeiro
toque de água. De nos espantarmos com o respirar do mar e das ondas.
Se não perdermos essa capacidade de nos espantarmos, veremos que há muitas
Romas na nossa vida e muitas por…viver. Principalmente porque a maior beleza
que podemos contemplar é a de alguns gestos. E se há corações que são pedra, há
muitos corações que são autênticas…Esculturas!
Apolo e Dafne de Bernini, exposta no Museu e Galeria Borghese (Roma)
(a mais famosa obra-prima de Bernini retrata a ninfa Dafne a fugir do
deus do Sol, Apolo, no momento da sua dramática transformação em árvore)
Os
fechos das lancheiras acomodam as sandes de queijo e fiambre, a maçã cortada em
quartos e os pacotes do sumo “rei da selva”, enquanto se ajeitam mangas de
casacos, puxam-se collants quase até ao pescoço, enrolam-se cachecóis,
procuram-se insondáveis pares de ganchos, enfiam-se bandoletes, encurvam-se
costas para ajeitar mochilas da escola, sacolas do judo e saquinhos de ballet, apressa-se o olhar, certifica-se chaves, senhas
de almoço, chapéus de chuva, enquanto, em acrobacias de malabarista, se tira do
bolso o lenço de papel para lhe socorrer o nariz pingado dos petizes.
E
eis que, a três quartos do corropio, a Bia interrompe o rodar de chave para a
definitiva saída de casa com um:
-Mãe,
tenho de ir fazer chichi…
-Agora,
filha?! Mas já estamos atrasados! O teu chichi não aguenta até à escola?
-Oh mãe, não estejas ralhada com o meu chichi… Ele tem muitas pinguinhas e
quando começas à roda ele começa assim…Parece a fazer espirradas…e já fiz uma
pinguinha… Mas tenho mais…
-
Vai…Vai lá… Anda lá à casa de banho! Ai, nem acredito que vou chegar
outra vez atrasada…
Então
a Bia diz em tom compassivo:
-Oh
mamã, tens que arranjar um relógio de avó…
-
Um relógio de avó?! O que é um relógio de avó, filha?!
-
É um relógio onde cabe muito tempo!
Na vida são, muitas vezes,
momentos e frases assim que nos sacodem a alma e nos devolvem a nós próprios.
Ao contrário do que muitas vezes pensamos, não são, de facto, os filhos que nos tiram do
sério: eles devolvem-nos àquilo que é realmente sério…ou ao que realmente conta!
E o que conta não é a soma
do que se dá em termos quantitativos. O que contará mais para o desenvolvimento
de uma criança não será, certamente, tanto o número de actividades
extracurriculares em que está inscrita ou o número de tecnologias de ponta a
que tem acesso, os acessórios e brinquedos topo de gama, ou o vestuário e
produtos da moda que tem (o que leva a que, tantas vezes, muitos pais trabalhem
o dobro ou o triplo para garantirem este “financiamento”, numa lógica de
aceitação sem reflexão crítica já que, numa sociedade competitiva como a nossa,
em que se vive refém de uma imagem de sucesso, muitos receiam ser vistos como
maus pais ou, pelo menos, desinteressados, incompetentes e falhados se não
proporcionarem os tais serviços e produtos impostos por uma lógica de mercado e
de consumo).
Não serão, sequer, as contas
poupança e todos os eventos culturais e científicos a que possa (e deva, sempre
que possível) poder ir.
E muito menos contarão, certamente,
os momentos em que se está… mas não está.
Por se sentirem obrigados a viverem
sete vidas numa vida só (ou mesmo num dia só!), muitos pais deixaram de estar e de saber estar. Vão
estando…Por vezes ansiosos, desencontrados, flutuantes, esporádicos, desancorados
e vagos. Desde os horários dilatados de trabalho às solicitações para uma
comunicação praticamente ininterrupta, muitos pais desconhecem o que seja uma
habitação serena do tempo, entrando num ciclo sôfrego de actividade e consumo e
arrastando as crianças consigo ou acabando por lhes oferecer esse modelo de
vida de sobreabundância a vários níveis que, paradoxalmente, só as enfraquece.
O que realmente conta, o que enriquece o desenvolvimento de uma criança, não é, pois, a
quantidade de produtos que tem à sua disposição; não é a
quantidade de actividades sempre acompanhadas por “especialistas”; não é a quantidade
de espectáculos e visitas a que vai “acompanhada” pelos pais agarrados cada
qual ao seu telemóvel e mais interessados nos likes virtuais do facebook
e na vida dos outros, do que nos likes
reais do próprio filho que lhes sorri (por enquanto) diante dos olhares
ausentes.
O que conta será a
disponibilidade reale ao vivo dos
afectos dos pais, os gestos sem pressa, o estar inteiro, o respeito e a
capacidade de corresponder às necessidades essenciais e
comportamentos espontâneos da criança, seguindo como pauta o ritmo do amor, do bom senso e da lucidez.
O que conta são pais emocionalmente
disponíveis, capazes de reconhecer que a sua presença efectiva e entusiasmada, com
coração inteiro, é o pilar do desenvolvimento de sentir-se amado e competente.
E, esses sim, são sentimentos de base que tornam menos relevantes quaisquer
ditos produtos ou serviços da moda e que são essenciais para se vir a gerir os
desafios do futuro…com ou sem crise.
Crescer num ambiente que tem
tempo, aceita e estimula os comportamentos espontâneos, permite a descoberta de
vocações e competências próprias, algo essencial para se manter o entusiasmo e
a persistência na adversidade, bem como de uma maior criatividade para se
conseguir levar por diante os projectos próprios. A função parental é mesmo “ensinar
a pescar” na adversidade, sem todos os apetrechos tecnológicos para o fazer,
mas com a capacidade de análise crítica e criativa do meio (assente na
confiança de se sentir amado e digno de admiração por aqueles que mais ama), o
que possibilita a construção dos seus próprios instrumentos de pesca.
Não é preciso dar tudo aos
filhos. É preciso dar o essencial…E sobretudo, o essencial de nós mesmos! A
nossa essência, a nossa alma, o nossa forma simples mas original de estar na
vida…Com tempo. De pais e avós!
O mesmo é dizer…Com o tempo que temos por
dentro. Com a nossa arte de ser. Que pode não ser a melhor, mas temos a certeza
que é a nossa melhor possível. E por isso é única. Porque ter tempo de avós
talvez seja isso: ter tempo para olhar e olhar sem pressas mas vendo cada filho de forma
única e, por isso, mais espaçosamente e mais adiante…
É ter tempo para o conhecer na sua espontaneidade livre, nas suas múltiplas dimensões, nos seus
múltiplos modos de sorrir, de estar triste ou de estar "assim-assim" e saber apreciar e saborear isso, dando
valor às inúmeras maravilhas da partilha e aos momentos deliciosos de
eternidade pura que nos passam entre os olhos e entre as mãos…
E, acima de
tudo, ter o sentido das pequenas coisas e colos onde cabem as grandes,
amparando desequilíbrios com o corrimão invisível e seguro do afeto, sempre
disponível…degrau a degrau.
Com o combustível inesgotável do afeto a embalar-me os gestos e a pura ressonância da esperança à roda do coração, o desejo de continuar a ser feliz e fazer feliz quem me rodeia, de me reinventar, de me adaptar ao que a vida me for colocando no caminho, de equilibrar os três papéis mais importantes do meu ser e de continuar a ter a capacidade de me entregar aos sonhos em que acredito e de me apaixonar pela vida e pelas vidas que me cercam e iluminam, creio estar pronta para as curvas e contracurvas dos teus 365 dias!
Quero, acima de tudo, não me deixar ir até à reserva! E não me assustar com percursos de longa duração ou mais acidentados. Não quero atalhos.Nem para-arrancas. Às vezes vou querer auto-estradas. Outras vezes, estradas secundárias. Mas quero o verbo Ir. E Chegar. E Evoluir. Quero a decisão. Quero confiar,acreditar, fazer e tentar. Com a vontade firme de melhorar sempre. E, para isso, tenho o depósito cheio de sonhos renovados, de projectos com ordem de prioridade mas, principalmente, atestado com os sorrisos dos que amo...Só assim sei ter a energia e alma necessárias para conseguir conjugar o verbo VIVER no presente do Indicativo e nas primeira e terceira pessoas do plural.
Quanto à sorte... Como alguém disse, "sorte é merecer ter". Se assim for, quero, acima de tudo, merecer ter...o que já tenho. Quero ter a sorte dos meus próprios passos e da minha própria estrada. Quero merecer este milagre da vida...e da vida de todos dias. Dos de hoje. Dos que virão... Neste ano bom! Em que mesmo não tendo 365 dias bons, terá, certamente, 365 coisas boas para agradecermos, quem sabe até, no final de cada dia!
Viver pode ser um verbo simples… Fácil de conjugar, até. Com felicidade
leve. Daquela que existe só por se existir. Num mesmo Tempo. Num mesmo Espaço.
Na mesma humanidade. Para lá dos compromissos profissionais. Para lá das lutas
políticas. E religiosas. E profanas. E mundanas. E imundas.
Viver pode ser simples… Mas no atropelo dos dias, não é.
Viver chega-noscomo um verbo ofegante,
carregado de pretensões insaciáveis, responsabilidades sempre urgentes e sempre
indeclináveis e a desapossar-nos, imagine-se, da essência dele próprio, ou
seja, da vida que nos pertence… Em suma,chega-se-nos inconjugável…
Vivemos certos paradoxos que poderiam até ser curiosos se não
tocassem, por vezes, o bizarro: Se é verdade que, por um lado, vivemos numa contínua correria “vital” na qual engolimos dias, horas e minutos numa espécie de “fast-food daily-life” sem
disso retirarmos qualquer prazer essencial ou mesmo qualquer evolução
fundamental, numa espécie de retrocesso neodarwiniano, o certo é que, por outro, vivemos submersos numa espécie de ilusão neurótica de intemporalidade. Todos corremos mas, paradoxalmente, todos adiamos. Todos adiamos afectos, todos adiamos sonhos, todos adiamos vidas exactamente porque vivemos nessa absurda ilusão de que lá para a frente, não
sabemos quando nem onde nos esperam dias ou minutos gourmet. E nisto, conscientemente insatisfeitos mas funcionantes, impotentes para mudar o presente mas com uma espécie de ilusão omnipotente em relação ao futuro, vivemos a adiar-nos, a adiar calmas, gentilezas, demoras no estar, a adiar o tempo e os tempos para os outros, as conversas, os abraços, um pousar de silêncios e olhares sobre um mesmo pedaço ou instante do mundo, os
sorrisos sem horas contadas, o amor até. Vivemos a adiar o melhor da nossa
humanidade ad eternum, a refugiamo-nos
nas nossas vidinhas esgotantes e esgotadas, apressantes e apressadas, cada vez
mais diminuídas dentro do cansaço dos relógios e dos batimentos cardíacos
para lá de acelerados que, tantas vezes, rebentam e ferem a alma de quem mais gostamos... Vivemos, tantas e tantas vezes, contra-natura, contra nós e contra os outros e, sobretudo, contra o melhor que podemos ser. Este paradoxo leva a que, muitas vezes, ao invés de crescermos por dentro e nos prolongarmos na simplicidade e autenticidade dos afectos, nos diminuamos e isolemos na complexidade das zangas que, essas sim, adiam e afastam, por vezes aburda e irreversivelmente, o melhor de nós e que, no fundo, se comparadas com o tanto que temos cá dentro só nos deveriam serviar para aprender que a verdadeira zanga que vale a pena é...zangar-nos com a própria zanga!
Não é que a vida, ela própria, não se queixe!!! E que não se esforce por nos abrir os olhos!!! Ela bem nos
surpreende!!! E muitas vezes com oportunidades únicas de mudança!!! Ela bem nos
desafia!!! Ela bem nos confronta ora com situações ou coincidências únicas, ora
com dilemas mais difíceis de resolver do que a equação do teorema de Fermat,
ora com aquilo que é pegar ou largar!!! Mas estamos tão ancorados ao familiar e
à ideia que temos de nós próprios ou do que a vida deve ser que não concebemos
nenhuma hipótese de mudar ou de viver uma situação diferente. Outras vezes,
permanecemos ancorados por medo das tempestades, o que acaba por não nos
permitir antever quaisquer raios de sol.
Mas a verdade é que se vivermos ancorados nunca chegamos perto de nenhum horizonte senão o do próprio medo que, ele sim, nos encurta e escurece cada vez mais a retina e a alma. E a vida não só tem muitos futuros como pode ter muito mais vida para lá da vida que lhe damos. O verbo viver é,
apesar de singular, cheio de pluralidades, ainda que de duração única e limitada… E é, por
isso mesmo, que faz todo o sentido agarrar, com um genuíno olhar de maravilha,
cada raio de sol que nos vem parar entre as mãos.
Porque o que realmente faz demorar uma vida, seja dentro de
um relógio seja dentro de um coração, é a dimensão da nossa vida interior…E
essa, constrói-se quando verdadeiramente convivemos com o essencial…Constrói-se
nos tempos reais da relação com os outros.
Constrói-se na experiência de comunhão. De bondade. De autenticidade. Constrói-se sempre que nos comovemos, sempre que amamos, criamos,
sofremos, partilhamos, alegramos, entristecemos, falamos, silenciamos,
reconstruímos, melhoramos e crescemos dentro do nosso tamanho… Viver pode pois,
e deve ser, um verbo simples… De sol feito. Entre as mãos.